sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

De murmúrio fiz as esquinas próximas onde ninguém passa

pintura de Lichtenstein

De murmúrio fiz as esquinas próximas onde ninguém passa.
Elas existem em-mim, saem de-mim
percorrem-me em passos lentos e rápidos
seguros, inseguros, fáceis, desencantados, trôpegos
como os dos homens que se levantam dessedentados de álcool
em gritos breves e imensa tontura.

Murmurei as esquinas próximas onde ninguém passa.
Elas existem, porque se erguem em frente de qualquer olhar
passeio, jardim, praça, avenida, ruela.
Existem, porque são o que os olhos querem.
Se as murmuro, é porque elas são o aspecto
que em-mim há para quem me olha.

José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Oh! como é triste não termos a alma que gostariamos de ter

detalhe do túmulo de Lorenzo di Medici, Miguel Ângelo


Oh! como é triste não termos a alma que gostaríamos de ter
para reproduzi-la de encontro aos muros da nossa ânsia
aos paredões sombrios do nosso gesto
às forças largas das nossas intenções
à praça grande que guarda as nossas capacidades
e encontrá-la na forma de Alma-Mulher, Alma-Gesto
Alma-Fracasso, Alma-Desejo, Alma-Encoberta na ânsia
de a termos. Alma-Nevoeiro de tanta face descoberta e fácil
como a nudez que nos torna tímidos e breves
para lá da ofuscada torre da nossa babilónica verdade e mentira.

José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

É de noite que me visto. E dispo. E consumo.

pintura de Joseph Wright of Derby

É de noite que me visto. E dispo. E consumo.
É de noite que os meus braços sobressaem dos ombros, os meus olhos do rosto e o meu pequeno sorriso do silêncio e da escuta.
É de noite que a música ressoa acutilante e total, evasiva e penetrante, força humana escondida por detrás de cada delírio pleno e perfeito.
É de noite que as silhuetas são marcadamente breves, já que as sombras as identificam e definem.
É de que o choro se aquece e se transfigura; entrega em gelo ou se desprende em neblina.
É de noite que tudo se sublima, se torna mais visível, mais perfeito, mais nítido, como o sono das crianças e as esperas dos velhos. Mesmo a memória, que é vária e nunca acaba.
É de noite que abro os braços e me apaixono.
É de noite que junto seis candelabros com todas as velas acesas, disponho uma infinidade de copos e rego de champagne a minha fantasia, a minha imaginação, a minha cortesia. A minha maneira de receber. Bem ou mal, mas a minha! Deixo a mesa cheia de-mim e do gosto dos outros. Deixo as cadeiras vazias para quem se queira sentar.
..................Nos candelabros, as velas nunca se apagam,
..................nunca se gastam. Na minha casa, à noite,
..................tudo é suicídio, porque a minha memória é
..................um grande abraço envolvente, transportando-
.................-me não sei donde para onde. Apenas fantasia?
É de noite que as sensações se materializam, que podemos enfrentar os outros nos olhos, nas mãos, nas bocas, nos copos. É aí que a navalha aquece o sangue, o grito sai mais nítido, o corpo cai mais pesado, o vento se enrosca mais perto, a junção é mais breve. Mesmo o medo, que sendo a razão de se ser, é a alegria contrária de nos possuirmos. Fantástica a noite de todos os dias! Com todos os seus aspectos!
É de noite que vejo nascer o mar com as suas fronteiras de várias cores, com os seus olhos de várias luzes, com os seus corpos de várias formas, com os seus gritos de vários tamanhos.
É de noite que acordo, logo cedo, quando os barcos dormem no calado rumar das gaivotas, empinando o voo junto ao coração da terra.
É de noite que tudo vive e adormece.
.
José Manuel Capêlo, Odes Submersas, Átrio, 1995

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

a voz que se levanta

alegoria da poesia, de Rafael Sanzio

podias vir com a tua beleza azul
levantar as mãos dos homens
adormecidos e gastos. podias vir
com o gesto da tua face em
sorriso aberto, marcar os olhos
dos homens que te chamam ao longe.
podias vir, e conscientemente proteger
todos os filhos que deste a nascer
por essas esquinas fixadas em cada
ponto da cidade, que sendo tua
é de todos os olhos dos homens
que te seguiam. podias vir, tu-mesma
ou a sombra que escolheste e te
representasse, porque a voz que se levanta
não é a tua, mas a minha!

José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

domingo, 25 de janeiro de 2009

palavra inicial V

estudo para cabeça de um poeta, de Rafael Sanzio de Urbino

para o João Ferreira da Silva

garras do destino neste tremor de gestos. como posso ser eu, se sou todos os outros que habitam comigo? como posso ser eu, se sou todos os que comigo me imaginam? mas como posso ser tantos se sou apenas um? não me inventem nem me peçam para inventar, para mentir. para fingir, basto eu. sou astro, face, olhar, gesto, pronúncia, restauro, pernas cruzadas, voo de ave, mãos, dentes, parafuso a entrar pela multidão, rodopio incontrolável num corpo de criança amável e indecisa. fumo com os lábios que tenho e não pareço mais, porque não sou mais que a forma igual que os olhos distinguem. e por estar farto de ser sempre o que me vêem. é que me inclino onde vegetam as aves falsamente alheias, falsamente dispersas. bruscamente entro onde a cidade se enche de eco!

José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

palavra inicial IV

Perseus com a cabeça da Medusa, de António Canova
.
vago e calmo é o poeta que se desprende das dores e dos vícios. do alheio e do que o habita. do que é real e imaginário. do que é facilmente disposto e dificilmente mentido. a cidade é uma página. a luz, um faiscar simultâneo e repentino. tudo aparece por entre as clarabóias dos prédios velhos e remendados. quem me vem dizer do que não posso? quem me viu onde ninguém me visse? sofro o medo horroroso e profundo do homem do leme. mas não o largo. menino de minha mãe me fiquei órfão de pai aos três anos. e quem mo lembrou, senão esta memória fácil e secreta? quem mo recriou, senão este gesto breve e fecundo? quem se me apercebeu, senão este caminhar de anos por entre as feridas da lembrança?! ninguém me esqueça como ninguém me lembre. tenho onde hei-de estar e que não me inventem!
.
José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

sábado, 24 de janeiro de 2009

palavra inicial III

Cidade, de Léopold Survage
.
nada do que me é novo é verdadeiro. entusiasmam-se as frases e cresce o descalabro. formam-se as imagens e inverte-se a realidade. apagam-se as luzes e refina-se o movimento. tudo é delírio e o anquilosado do gesto. seguras, só as sombras que deslizam incapazes de serem outra coisa. tudo é igual, tão o-mesmo que arrelia e confunde. busco a noite dos silêncios vários e cada um deles, é um gesto desprendido e amável. o mesmo não posso dizer das vozes que me cercam, tão alheias e tão presas às marés de outros mares. o oceano é largo e não se ilude. tem o seu ritmo e o seu fulgor. é força e ânimo e imenso delírio. qual Homem, qual Mostrengo, qual Adamastor de bíblica e mitológica forma!?

José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

palavra inicial II

Marte e Vénus, de Paolo Veronese

certa, virá a mulher desnuda com os ombros oscilantes, a boca larga e o cabelo desprendido. certo, virá o homem seguro pelo andar, trémulo no olhar, segurar-lhe a mesmíssima mão que se prende ao horizonte. deles, dessa união conciliática, nascerá um gesto, uma forma, uma presença. será caminho e desespero. noites de insónia e fluxos de suor. risos e trejeitos de uma outra dor. felicidade e destino. ritual e sevícia. clamor e pranto. amanhã, continuado em dias de outra claridade. tudo será diferente depois de tudo feito. dois sinais, dois símbolos, duas matérias que de tão idênticas, tão diferentes se mostram. o homem e a mulher!...


José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Saber o que está tão perto

pintura de George Braque


Saber o que está tão perto
tão seguramente confessado
qual retorno ao que se escreve e se canta
porque nada pode acabar sem ter começado.

Fluído, o que se consome por entre os lábios
- que são restos de hoje e lágrimas de um amanhã
que se inventa, se cria, se muda e se retém.

Não me demovam, porque tudo é luminoso e fluente
próximo e opaco, clareira e vertente.
Imagino-me e não ouso.
Invento e não creio.
Sonho-me e vejo-me um menir isolado.

José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Rebentem as noites de chuva e aqui estarei

mulher deitada, de Pablo Picasso


Rebentem as noites de chuva e aqui estarei
aqui me suporto, aqui me faço fé.
Respondam-me com a segunda razão
- a razão dos aspectos, a razão da fala -
a lembrança da alma. Poderás recordar a alma?

Oh! frágil noite de lágrimas e fogo
onde me retêm as nuvens e as margens marítimas.
Deixa que me faça para que te possua.
Depois... Depois, que venha a tua alegria breve
transformada em desejo, em cama
esteira, pau, suor.
Deixa-me o tempo de hoje
porque amanhã será o leve tempo das brisas.

José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Quanto tempo demorou o meu tempo em-ti?

pintura de William Trost Richards

Quanto tempo demorou o meu tempo em-ti?
Quanto segredo me custou as horas longas
em que a espera se anunciava e se estendia no rigor da demora?
Quanto tempo era o meu sem ti?
Quanto silêncio me habitou sem que te habitasse nas longas horas
em que me perdia na hora demorada?


Foi num fim de tarde, enquanto o sol tardava no mar.
O grande cata-vento movia as suas pás
empurradas por um vento sibilino e farto.
Alongava-se o horizonte mesmo em frente
e as quilhas dos barcos empinados, presos na corrente
acendiam luminosidades que a água reflectia.
Chegaste com o teu sorriso branco mascarado de vésperas
de manhãs erguidas no sono que a noite compõe
...........................................em horas remexidas e soltas.


José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Longe estavas, como longe estás

Ombro esquerdo, de François Boucher

Longe estavas como longe estás
oh! amada,
quando as razões nos conduziram ao encontro
no centro da sala, com luzes suspensas
figuras vagamente presentes
cadeiras praticamente encostadas ao chão
o centro dos corpos no centro da música...
Um qualquer lugar onde, que não importa nomeá-lo ou distingui-lo.
Só sei que lá estávamos!
Reinava a noite no seu silêncio manso
lugar onde surgia a união das vozes
as falas velozes dos encontros fugazes, a palavra na boca
- qual solidão do olhar-
primeira impressão de um aceno de adeus.
Como pode acontecer no sempre, um até sempre!...
Um até depois!
.
José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

palavra inicial I

pintura de René Magritte

entra-me brusca a noite, lepidópetra e cheia, com os calores claros dos dias por se abrirem, quando do vulgo da silhueta se enfrentam carrascos de amanhãs com mãos soltas e gestos semi-cerrados, no confuso diálogo de bocas emaranhadas. não é preciso que as palavras se desprendam, e soltas varram os locais usuais, fáceis e abertos. com a noite, vem-me o sabor das ruas planas e das casa plenas, das bocas insaciáveis e dos amantes adormecidos numa cama de qualquer quarto, satisfeitos dos gestos móveis nos corpos habituais. ao sentir isto tudo, o que mais me satisfaz, é poder erguer o braço e atingir o plano, que é o objectivo que me entusiasma e aquece. é o de poder possuir várias mãos que se me dirigem e afastá-las com o simples gesto de um silêncio, consumido em franjas de outros lençóis. depois, tudo é simples e tão seguro !


José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

A imagem que o sono adormeceu

pintura de Roger de La Fresnaye


descobrira a noite o meu silêncio de sono por fazer
com as estrelas penduradas na chuva que caía
já que os gestos se desdobravam múltiplos de ser
plenos de sonho e cansada fantasia.
só que pela manhã, neste silêncio de quarto, penumbrado
há horas que passam friamente arrepiantes.
emoldura-se o gesto no movimento desfiado
qual soluço quedo e triste! só amantes...
em cima da mesa, uma fotografia tua com o casario atrás.
é engraçado. lembras-me alguém, serenamente
e no mesmo momento, há uma ligeira névoa que desfaz
toda a visão errante e descontente.
resta esse olhar teu que é estranho e infinito
pensado sei lá em que distância ou em que perto
já que a luz que te ilumina, é parte e grito
que o teu corpo esconde em lugar deserto.
mas a noite, na imagem que o sono adormeceu
tem vapores de ópio e álcool liquefeitos
força de orgasmos que o silêncio arrefeceu
nos encontros marginais dos nossos peitos.

José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Se o meu silêncio fosse a traição de-mim


pormenor de painel do Jardim das delicias, de Hieronymus Bosch

a Miguel Torga

Se o meu silêncio fosse a traição de-mim
como a nuvem que, fugidia, apaga o sol
retornaria ao lugar constante onde me encontrei
em primeiro e último lugar de nascimento.
.
Se a terra fosse tudo isso que piso e seguro
com o mesmo à-vontade com que ergo as mãos ao vento
deixaria os frutos nascerem debaixo dos pés
com a mesma alegria com que afago o eco.
.
Se tudo fosse, apenas, silêncio e escuta e desordem
reuniria o meu exército de fantasmas e com eles
percorreria as ruas vazias de sons e figuras.
.
fugiria aos lugares comuns e encheria de certeza
as vagas plenas do oceano, que manso avança
e tenebroso se refugia para lá das areias móveis.
.
José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

domingo, 11 de janeiro de 2009

Seguraram-me as mãos

cavalo bravo, de Theodore Gericault


Seguraram-me as mãos.
Mas de que vale segurá-las
se nesta terra tudo se compra
tudo se vende?! Como não gastá-las!?...

José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

sábado, 10 de janeiro de 2009

Inventemos o encoberto em-nós na luz que se apaga

Onda, de Gustave Courbet

Inventemos o encoberto em-nós na luz que se apaga
e se inventa, como misérias de água que o ribeiro deixa
ou o mar expõe na sua imensidão serena e selvagem
bárbara e monótona. A alma! ...
Inventá-la, é guardar o resto que resta de-nós
e se não sente. É atravessar um grande jardim
sem árvores e sem bancos. É respirar o ar de um tubo
polvilhado de carbono. Basta olhar tudo o que vem de fora
para nos compreendermos sem alma, como casa grande
e meias luzes de intento e graça. Sem voz nem eco.


José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

o inverno inverso das estradas

Inferno - Centauro, William Blake


Quando as páginas brancas forem remendos carbonizados
quando da rua lavada emergir o estrume lixo
quando do verde jardim as crianças se afastarem
quando o mar invadir a grande praça e arrancar
os frágeis bonecos emparedados no pedestal
quando as aves gritarem e os homens se afligirem de vez
quando tudo for negro e a terra fogo
então
oh! santidade absoluta dos actos
oh! irritante aspereza dos cortinados
oh! insensível brandura dos alvos cabelos
oh! demoníaca insegurança de todos os gestos
então
deixará de haver mundo para haver inferno.
Os anjos aparecerão vestidos com vestes ígneas
remendo de ossadas e sorrisos lôbregos
pés de vento e mãos de espadas
tão fortes e cruas como a mão que sustem
o inverno inverso das estradas do mar.

Fujam-fujamos onde a sombra não nos inquiete
onde o calor venha devagar e a onda rápida
(quer os livros estejam fechados ou abertos
o cimento mole, a terra ressequida, as luzes circulares)
onde olhando as unhas possamos ver as nódoas
da nossa magia destrutiva e assassina.
Fujam-fujamos para todo o lado, menos...
Menos, para aqui, porque do outro lado
está a imagem que nos envolve
sem termos consciência de que é ela que nos contempla!



José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Tocata e fuga

rapariga com boina vermelha, de Pablo Picasso

O pianista toca a tecla do piano, como se nada mais ouvisse do que a tecla do piano em unicorda suspensa.
O dactilógrafo toca a tecla da máquina de escrever, como se nada mais ouvisse do que o olhar do chefe a instigar-lhe a que escreva, na tecla da máquina de escrever.
O pianista toca. O dactilógrafo toca.
Eu
toco no meu peito por dentro da camisa e sinto a carne que se toca.
Só toco a carne, não o espírito já que a minha sensibilidade se toca em imagens que saem em notas de uma música diferente.
.
Olhando a rapariguinha que come guloseimas
sinto-a numa forma estranhíssima de lhe tocar...


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Há que reconstruir os gestos dos que se ausentam


Nu descendo a escada, de Marcel Duchamp


Há que reconstruir os gestos dos que se ausentam.
Nada do que existe é igual. Disse-o tantas vezes
disse-o tão igualmente, que farto estou de inventar vozes
igualdades e embelezamentos de outras vozes.

Esquecido, repouso no teu rosto.
O teu olhar enche-me de contínua busca
e o arredio gesto, de imenso vagar.
Não posso ter pressas. Basta-me olhar-te
e saber-te viva. Tudo o resto, é a grande rocha
rente ao mar. E alguma sombra...

José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Nunca chego a casa. A minha imensa manhã acaba no outro dia.

pintura de Albert Anker


Nunca chego a casa. A minha imensa manhã acaba no outro dia.
No dia em que os homens inventaram a vida, secretamente
em que me vi velando o vaso sagrado da última leitura dos lábios
em que o sol repousava a pique sobre a minha cabeça.
Nunca chego a casa sem que a imensa manhã acabe no outro dia
no momento em que seguro as algibeiras e lembro
que a distância que me separa da terra
é a mesma da distância que me separa do sonho.
E amo o sonho e o amor.

Ninguém ama e sonha mais facilmente do que os homens tementes e incuráveis. Mas ...

Nunca ninguém inventou a minha infância!
Ninguém me disse como foi a minha ousadia
como ela aparecia, como ela se parecia
como ela se transfigurava, como ela era!
Ninguém me disse nada. Como me cresciam os cabelos
se me iluminava o olhar
corriam os rios, que me diziam as pessoas ...

Nunca ninguém inventou quem eu era!

Quem me poderia imaginar no pequeno que crescia
com os calções brancos à margem do joelho
sapatos envernizados colados às meias brancas
o cabelo curto, olhos grandes à procura do tudo
que era o nada que eu via em tudo o que me aparecia!?...
Quem me poderia imaginar no pequeno que eu era
com as mãos soltas a erguerem choros
lágrimas pesadas de encontro ao peito
corridas breves na praceta
- pequeno largo do meu destino, da minha alegria, da minha solidão!-
jogos de bola, sapatos escalavrados, calças rasgadas
corpo sujo, sovas monumentais. A minha Mãe!

Nunca ninguém inventou quem eu seria!
Nem mesmo quando jovem; a barba a desfiar-se no rosto branco
a vista pregada na janela da frente, olhando a pequena Lúcia
que se escondia por dentro dos reposteiros
olhando-me desafiante
em todas as horas do dia
às escondidas dos pais.
Mesmo, quando as correrias se faziam em horas retardadas e mendigas
em saltos do rés-do-chão para a praceta
em jogos de berlinde, na terra solta e escalavrada
até que as horas chegassem, para que chegasse o tempo
do jantar
da luz muito minha
- daquela que me habituara a olhar
na lâmpada que se suspendia do tecto.
E adormecia com a claridade da sombra.

Nunca ninguém inventou a minha infância!
Mesmo quando inventei o sabor do meu primeiro cigarro
quando dei por mim a satisfazer-me irrepreensivelmente
quando pela primeira vez respirei os lábios duma francesa, mais velha,
na Nazaré, ou, quando uma jovem prostituta, numa rua de Tomar, me
conseguiu abrir as pernas. Aí, inventei o verão da ânsia, o desejo de
correr por entre as margens do dia e da cidade, correr veloz antes que
a juventude se acabasse, antes que as colinas tomassem os lugares dos
espelhos, os homens me gritassem os seus códigos secretos, a palavra
viesse com a sua tonalidade negra.
Nunca ninguém inventou a minha infância.
Apenas eu a conheci, mendigando as horas, muitas;
as tristezas, várias; as loucuras, velozes; as palavras, atrevidas.
Quem inventou a minha infância?
quando cheguei a ela, a luz tinha a hora do sol
e este olhava-me, no seu espelho mágico e encoberto...

José Manuel Capêlo, Odes Submersas, Átrio, 2000

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Certo, até ao momento de chegarmos

Paraiso, de William Blake


Viajo na noite incógnita e escuto...
Oiço, num desponte, o ladrar dos cães pelo tempo adiante. O mirrado cantar dos galos na alvorada a despontar. O desfiado riso dos madrugadores a barbearem-se no grito alegre dos padeiros em distribuição de pão. O assobiar dos varredores de ruas em serigaitada permanente. Viajo em tudo, enquanto a outra metade dorme, ou pelo menos, desperta. Viajo... Tudo está certo, mesmo o errado que se confunde com o balouçar das folhas, enquanto a brisa se evade na procura e o andar do homem fere as calçadas desgastadas pela erosão dos momentos. Enquanto a noite adormece para acordar mais tarde e a manhã desponta na quietude dos pântanos amordaçados. Se aflige. Viajo ... No futuro das imagens que tornamos ilusão, desejo que formamos sentir, sentidos que adoramos como certeza. Como se de reais se tratassem e não esmorecessem as formações alegres dos nossos sonhos de riso e prazer. Viajo ... Em ti, na certeza de te chamares mulher e teres um corpo bem diferente do meu. Tentar-te na proporção de me desejares possuir sem nos pretendermos egoístas ou simbólicos adoradores. Viajo ... Na vida que nos habita e nos ama, como se nos lembrássemos de todas histórias boas, ouvidas em pequenos. Sem destrinças, sem medos, sem vazios de alma. Viajo... Até ao momento de chorarmos. De querermos ter e não pudermos, já que tudo é difícil, difícil demais para os nossos olhos. Porque o somos e não nos enganamos. Porque nada se perde. Tudo se transforma.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

domingo, 4 de janeiro de 2009

Os teus olhos vieram com as sombras da tarde

Proserpina, de Dante Gabriel Rossetti

Os teus olhos vieram com as sombras da tarde, por entre os reflexos de luz que o espaço da sala enchia. Aninhavas-te agora, no banco do carro. Ao lado, as árvores contemplavam e as luzes mortiças de alguns andares reflectiam-se no mar próximo.
Cingias ao longo da tua saia negro-e-branca, a blusa que apertava os contornos dos teus seios breves e fartos ou a romã da tua boca vermelha, esbatida na claridade branca dos teus dentes certos. Cerravas e abrias os lábios deixando que o teu corpo esplêndido me inundasse em vagas frágeis de abraços e sons, de imensíssimos nomes de outros tantos desejos, forças ou imagens que fazias dizer por entre o êxtase sereno e longo.
Vieras, como a madrugada que nos acordou em segredo e em fúria nos unio no suor que embaciava os vidros do carro, guardados que estávamos no lugar verdadeiro e certo. Entre as árvores de uma floresta encostada ao mar e perto dos sonhos que tornávamos próximos e nossos.
Depois, e longe de ti, só o som do teu nome se me segredava, enquanto conduzia em direcção à cidade grande, que me acolheria para lá do tabuleiro da ponte - esse enorme carrocel de sono - e das almas que não se movimentavam ainda.
.
José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

sábado, 3 de janeiro de 2009

Oh! amada oh! minha Ilha-Verde da paixão

pintura de William Trost Richards

Oh! amada oh! minha Ilha-Verde da paixão

cercada de ventos fortes ou tormentas
de marés vivas ou vingativas vagas alterosas
crespúsculo solar desta natureza pródiga de contrastes
que, subtil e discretamente, te arrasta e desfigura o rosto
marcado pela beleza - essa força íntima e secular da terra-
modelação perfeita que só a própria perfeição possui.
Mas tu és forte e determinada.
Porém, nada, mas nada vergará a tua vontade e o teu destino
já que são eles a causa de tu existires
de saberes que estás na terra como mulher e como vontade.

José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Sempre amaste as luzes e os olhares

Vénus, de Jean Auguste Dominique Ingres

Sempre amaste as luzes e os olhares
e passeaste a tua fronte por entre as mãos
que primeiro te chegavam e te pediam.
E rias. Rias com o prazer de quem se tem... e tem!



José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000