Golconde, de René Magritte
Aparentemente nada resulta.
O que resulta é não resultarmos de nós-mesmos
os mesmos que resultaram de outros séculos
com a mesma força que resultaram antepassados
linhas directas que deram eixo
às formas que hoje somos.
Paralelamente e com os sinais dos tempos
as formas foram aparecendo
tornando-se seculares
idênticas
sem que o sorriso se alterasse
com a maneira mecânica com que os cigarros
são feitos hoje.
Nada há a dizer quanto ao sexo
que nos deu a mão e outro sexo.
Nada há a dizer quanto à beleza
com que o nosso nascimento foi materializado.
Nada há a dizer quanto à forma
com que as andorinhas criam ninhos
por vésperas da Primavera.
Hoje sou uma badalada rudimentar
das várias horas que se erguem sem destino
um frio achado em mim-próprio
encolhedor de ombros ante a maior miséria que se viu
ante a miséria de encolher os ombros
ante os ombros encolhidos de miséria.
Estou farto de ser idêntico!
Idêntica era a voz que se me baralhava cá dentro
que me emolcionava o sangue
que me fazia vomitar de cobardia
e a que não sabia responder.
Idênticos eram os meus gestos falhos
os meus risos de pobre diabo
a minha identicamente paralela razão de não ser
as buscas contínuas de destino
os amores perdidos no vão duma escada qualquer
ou nos degraus de uma catedral de sinos ocos
observando o sacro prior
humedecendo os virginais fulgores
de uma beatíssima rata de sacristia.
Ironicamente
na casualidade que me confere
sempre passei por mais uma ou outra pessoa
todas iguais
aparentemente
mas com o defeito do senão
de se quererem assemelhar uma às outras.
Sensatamente fugi
e recolhi-me aos bocejos dum pintor de jardim
acarinhando as flores
como se fossem ondas fluviais
pássaros
como se fossem livros a desfolhar
céus
como se fossem marchas fúnebres
ou figuras
como se fossem raios a curvarem-se.
Do alto deste pequeno inferno
deste púlpito sem ornamentos
de frontal escadaria
sempre pude olhar a Deus
este Deus que me existe cá dentro
que sinto
mas que não vejo.
Este Deus que é a minha Fé
razão obscura e temida
como a tela dum filme de horror.
Deste Deus a quem rezo sem rezar
a quem me dirijo sem me dirigir
e a quem peço um menos de súplica.
Sim
este Deus que tudo encobre e tudo destapa
que é a forma do meu sorrir e do meu beijo
que é a luz deste poema
e é a sombra desta ideia.
Este Deus que deu manha aos homens
e celibato aos padres
já que são eles a cumprirem o mandamento
obediente e de castidade.
Sim
eu sempre tive o meu Deus encoberto em mim
sempre O tive com as lágrimas que escorriam verdadeiras
que escorriam e me inundavam as mãos
suadas de as segurar
esse Deus que era o meu segredo
das grandes noites de reflexo
das grandes noites de magia oculta
das grandes noites de sossego e paz.
Mas se vim do homem como ter Deus?
Não seria preferia ter barcos e aviões?
Ou mesmo várias mulheres ou vários homens?
Ou mesmo as ideias umas conta as outras?
Sei lá o que estou para aqui a dizer...
Sei lá porque falo deste mistério
que constantemente me envolve
e me deixa descansado quando nele penso!?...
Sei que quando me deitar deixo de pensar Nele
deixo de me dizer que Ele existe
que Ele não é mais do que o meu Eu a confundir-se
a minha sensação de medo e de culpa
a minha razão porque hoje estou vivo
e amanhã desapareço sem deixar rasto.
Mas se assim for
que o seja. Nada é mais natural
nem mais verdadeiro nem mais evidente.
O mundo
- que não pode ser as mãos de uma criança -
rida como um carnaval de indiferença
mascarado e fugidio
ambíguo e sem conseguir ser irónico.
E por isso as minhas mãos choram suadas
suam de choro
e põem-se em forma imprópria de oração.
Nos cemitérios os restos de meus pais
de meus avós
dos avós de meus avós
da geração antepassada que me ungiu
reclama em voz de sepulcro a minha voz.
E dou-a!
Possivelmente
muito possivelmente será para eles que falo
que enuncio um poema
que desdobro as palavras e firo razões.
Será muito possivelmente que grito
o meu grito de mártir e de diabo
se mártires são os santos
- em que não acredito -
e diabos os vermes que me irão comer.
Mas não.
Para isso há o fogo para que nada resulte
para que tudo desapareça
para que o monte de cinzas seja o lugar
onde os homens escolheram descansar.
No fundo és tu meu ser humano
disfarçado
fundo que nasce e não se completa
olhos de madrugada a cantarem razões
sorrisos de vésperas a anunciarem que as sombras crescem
e se diluem no morno dos nossos sentidos
que passam perdurantes de nós.mesmos
e se embalam no sonho-sexo duma noite por achar.
Assim somos nós
eu e tu
comungantes deste delírio que nos acode
desta presença que não é presença
desta fúria matizada e breve
que são os nossos corpos por se achar.
Mas entre uma noite e a madrugada
há o silêncio desta vez.
Há a maneira dos teus lábios a serem presença
e o encontro das tuas mãos nas minhas.
Por tudo e uma razão
nasceste na manhã em que Deus feriu o mundo
no momento em que o pássaro sentiu o tronco
em que o homem balbuciou o queixume do teu sorriso
em que a forma ganhou a íris do teu sexo.
No fundo
nada mais tinha a dizer.
Era tudo breve
breve
breve como o dissilábico da tua voz
infante
ínfima
única
a reproduzir
que o mundo só acaba nos lençóis.
E o que é o sonho
senão uma noite que se faz?
E o que é a manhã
senão um dia consumado?
Entre ti e mim
agora
há o silêncio que nos busca.
E não será que o buscar
é a forma que achamos própria?
Calemos o silêncio.
Calemos o fulgor que nos arde.
Calemos a própria voz e busquemos a luz
num reflexo de luz frouxa.
Ah! como buscar não perdoa!
E as tuas mãos na tua face
têm o querer duma ave de rapina
o gesto duma acção momentânea
e a busca de te encontrarem comigo
numa cama de pau e esteira.
Fugindo
tenho a nuvem do meu cigarro
diluído
fumegante
atroz sinal de que o tempo se completa
que perdura através do tempo
e que o mesmo tempo
é um sinal que não corresponde.
O tempo é um engano.
O nosso nascimento outro-tanto.
Mas também tenho que dizer que a minha almofada
é tão pesada quanto o meu cansaço
quanto os meus olhos que se abrem pesados
pela manhã e fogem para a água
com medo de secarem.
Por isso desperto e enfrento a luz.
Por isso observo os olhos dos que passam inutilmente
dos que agarram com as mãos as esquinas das ruas
lançam um sorriso e escondem lágrimas.
Pode bem ser que sejam eles os que verdadeiramente amam
os que passam em busca do modo e encontram o tempo perdido
os que por um pedaço de pão pensam ter a barriga cheia
ou que por não terem barriga julgam-se com o corpo fresco.
Pode bem ser que sejam eles os poetas e eu o antipoeta.
Pode bem ser que lhes pertença a rua ou as badaladas das horas.
Pode bem ser que leiam os livros que eu não leio.
Pode bem ser que não seja eu quem eles olham.
No fundo
olhar é distinguir uma aparência que se não distingue
uma imagem que por ser viva também é falsa
um corpo que por lá estar não se percebe.
No fundo talvez lá bem no fundo eu seja quem não julgo ser.
Talvez que eu seja a aparência inaparente
ou uma forma movediça que tem pés e mãos
ou o resultado duma catástrofe de leito.
Certo que a manhã vem brincar com a alma
vem arder onde haja um reflexo
uma mão uma janela um assomo de sombra
um riso infantil duma criança feliz.
Mas será que uma criança é feliz?
Perdoa criança
mas eu não quero chamar-te infeliz
eu não quero que me venhas dizer que a sombra te atingiu
nem que o pássaro caiu do beiral com a minha pedrada.
Não! Eu não quero dizer nada disso
mas somente perguntar-te se és feliz?
Acredito que a felicidade seja algo muito importante
pois mais do que ninguém tu deves merecê-la.
Mas à medida que fores crescendo
encontrarás pelo caminho a outra face do espelho
aquela-mesmo em que olharás e te verás diferente
enganada desiludida baralhada
sem vontade para nunca mais creres em felicidade
que foi feita pelo homem com a mesma argúcia
com que criou outros nomes e outros gestos:
a guerra como o exemplo mais intimo nele.
Mas um dia decidi pintar o mundo.
Estiquei o braço
levantei o dedo polegar
fechei uma das vistas
e tive a impressão de que as silhuetas
não eram tão nítidas quanto o horizonte.
Por isso voltei a repetir os gestos.
Aparentemente a diferença não era nenhuma
a não ser um ligeiro contorno que se adivinhava
numa frente paralela ao risco do horizonte.
Atentei bem com os dois olhos abertos.
Sim, não havia dúvida: era o mar! ...
Mar
explosão branca de carroceis em redor de monstros
sem vizinhança que lhes possam destruir a imagem...
Paralelipipedos de estradas inteiras
de volta ao mundo na razão de vinte e quatro horas...
Sobejos fossilizados que se mantiveram na razão de anos
como imagem directa duma luz preelítica ...
Acordar de muitos sonhos que se distinguiram nos tufões
e se martirizaram nas grandes tragédias de fundo ...
Mar
onde tenho eu o teu espaço?
Essa imensidão sinistra que me embala e me cativa
sabendo eu que és um assassino em potência!?
Forçosamente que terei um destino bem diferente do teu
um acordar com as suas distâncias e paredes
algumas árvores em redor e o silêncio
dos pássaros nas manhãs arejadas e dissipadas nas névoas
que não teimam em ficar...
Mar
de relíquias feitas em dias de longas horas
com o pranto das aves a mergulharem baixo
os penedos a saírem dos promontórios esguios
a minha paciência a não ter limites
e tu cada vez mais distante
mais distante
tão distante que nunca te vi nem senti
nem chorei pela perda das tuas marés.
Mar
hoje tenho um infinito que não desvendo
nem te abro no guardanapo de todos os dias
de todas as noites de todas as mazelas que me fizeste.
Quero-te grande
assim como estás
grande como a grande cordilheira que passa
por debaixo do meu olhar
olhos de luz afogada e mão branca
branca de mim vermelha de tudo
até de sangue que não pára de escorrer.
Mar
não quebres o meu silêncio e não o escondas no teu.
Não brinques com o meu sorriso e não o transportes
na fuga da tua raiva esverdeada.
O que eu quero não o tens.
Amanhece o dia e a luz solta-se de encontro à minha mão
que se estende pela cidade de rua sem almas.
O que eu quero não o encontro em lado nenhum.
Vem com o silêncio e afasta-se com o desconhecido.
Talvez amanhã o sol mude de posição
as mãos se ergam e os gritos estoirem
as ruas se encham e a cidade viva
para que o tempo marque o virar da História.
O resto
virá da Terra em palavras e livros...
José Manuel Capêlo,
Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983