pintura de Victor Vasarely
para o Luís Osório
Na noite incógnita os rastos do poema…
As luzes a irem e a virem
por entre o turbilhão do cansaço…
O gosto das madrugadas passageiras encontrando forma
no ninho de antenas verdes, em risos de molduras geométricas
pagamentos diários - sem salários fixos –
enquanto o turbilhão do proxeneta procura na almofada
o licor acre duma noite de insónia compensadora.
Como se não bastasse emoldura-se o cigarro
cospe-se para o meio da rua
onde todos passam e ninguém pára
dado que parar
seria que cuspissem em nós-mesmos
os próprios dos próximos.
Em feliz coincidência
(a consciência em espirais e gritos
umas vezes roucos outras alegres)
a caneta que escreve em círculos
ou semi-círculos de enfeite
obra rara em deuses adormecidos nas estantes…
Pegando num deles
pode-se abraçá-lo ou rasgá-lo
com o mesmo destemor com que se o lê…
Poderá importar pouco
dado que o pouco poderá ser o muito
que nada temos. E tudo isso é mau
como o bom seria olharmo-nos de vez
arranjarmos uma lua de mil aspectos
crescermos no azul e espraiarmo-nos no fundo verde…
Poderíamos eventualmente deixar de ir
à confeitaria para comprar bolos
seguir um caminho paralelo
que não nos levasse a qualquer lado
- como à imensidão dum prado
onde não pastassem cabras -
ou a um rio onde não houvessem pedras
formas esguias da nossa perplexidade incomensuravelmente diminuta.
Afirmaríamos por outro lado que as mãos
eram arredondadas, próprias de desenhos rítmicos
os cigarros fracos, próprios de desenhos concêntricos
as vozes arrefecidas, próprias de desenhos iluminados pela noite
os copos cheios, próprios da boémia desaprendida…
Como se nada ficasse
gastaríamos as mãos nas paredes
os cigarros nas bicicleta as vozes nos bordéis
os copos no fígado
- onde tudo seria guardado, como que num cofre
sem chave, sem segredo, sem guarda –
apenas lembrando que lá
o tínhamos posto…
Ainda assim, a barbacã seguiria os contornos
tal como o rio, as margens
a cidade, o tempo
o meu olhar, a distância
a face da menina, o brinquedo por andar
a bicicleta, o fumo das chaminés
a tua presença, o movimento das tuas ancas
as aves, as antenas verdes
as nuvens, um mar fluvial
os remos, as braçadeiras do poder!
Qualquer função seria a minha a tua
como um interruptor de luz
enche a casa de gemidos
ovais empastados solenes
composição duma partitura inacabada
ópera de falsetes e acrobatas
circo de marianos e margaridas…
Como se tudo fosse um mundo único
bastava-nos levantar as mãos
para pedirmos perdão pela nossa inocência
escalavrada e grosseira
painel de tinta arremessada
ombro encolhido por murro directo
boca aberta gritando surdez
cigarro na mão
a atestar o vício.
Todas as aparências tinham características…
Sonâmbulas e ásperas
mal disfarçadas e rudes…
imaginavas-te diferente
por seres exactamente diferente
de todos nós
nós os que nunca parecemos iguais
A tua voz brincava com o ar
explodia em malícia
afogava a tua vivacidade
repreendia quem se lhe opusesse
e habituara-se a dizer…
- Vamos daqui!
Terias a certeza de seres tu quem mandavas
ordenavas brincavas com os nossos olhares
incrédulos mal postos
na tua figura de rainha anã
irrequieta ágil desempoeirada
nas calosidades que te cercavam os nós dos dedos
todos bem iguais à tua inteligência
irrequieta ágil desempoeirada
como os estridentes dentes
que salientavas
no fácil riso que te envolvia.
Bastava que tudo tivesse a proporção
tão necessária para ser luz
aparecesses longínqua e caminhasses directa
ao ponto de encontro
em que nos situávamos.
Não era preciso mais que uma palavra
um gesto
ou um adeus
para olharmos tudo diferentemente.
Rápido como o vento, só o nosso gesto…
Parede encostada à outra parte do quadro
que nos olha ao comermos bolos
ri ao fazermos caras
entristece-se ao ver-nos seguir sem encontro
só porque não está em nós podermos ganhar…
Na incógnita noite os rastos do poema…
Quem os virá buscar, enquanto ainda forem chama
luz, visão do dia, semente e pensamento?
não importa a que distância…
Mas venham!
Tragam as vossas bandejas de qualquer prata
as vossas mãos de qualquer pele
a vossa imagem de qualquer corpo
o vosso sentido de qualquer fim
as vossas ideias de qualquer ilusão…
Mas venham!
Com a eternidade que não vos obriga
a serenidade que não vos realça
a amizade que não vos impõe
a certeza que é própria de todos
a função que é dita de alguns…
Mas venham!
Tragam o espaço e os planos
as vossas cabeças e as vossas bocas
os pincéis e as paletas
a sombra e a claridade
as mesas e as portas
os museus e os bordéis
as mulheres sérias e as que o não são
as vossas filhas e as vossas empregadas.
Tragam as lembranças e o presente
os sãos e os doentes
os mendigos e os fidalgos
o forcado, o cavaleiro, o matador
todos eles com o touro à cintura
já que a arena é bem grande
e todos têm lugar em pé…
Mas venham!
Venham sem cerimónia, sem requintes
naturalmente
como natural é o céu e a voz encoberta
para lá da montanha.
Lembrem-se que todos têm o seu presente e o seu fim…
Que tudo cresce e tudo passa…
Que as noites são dias que se põem
e as manhãs luzes que se despregam…
Lembrem-se que são mortos os que pensamos
mas que são os vivos, os que nos amam…
Que tudo é igual
desde que não se mostre diferente…
Que uma hora não é igual ao tempo
mas que o tempo é uma hora…
Mas venham!
Tragam cânticos negros e odes triunfais
dispersão e mulheres de luto
o antónio-só clepsidra e as sombras e as vozes
cézanne van gogh picasso modigliani dali
almada amadeo bual lud seixas osório
um exercito de não soldados que lutam pela eternidade.
Mas venham!
Tragam nas mãos
rosas, cravos, manjericos, orquídeas
o que quiserem…
Mas venham!
Já que o mundo é mundo e o homem se acaba…
Já que a mão que acende cigarros, também acende fogos
e toca em botões e propulsiona ogivas
e não pára e não pára e não pára…
Parar, é como não saber! Mas o homem sabe
e sobe e desce e avança e recua
e obstina-se e cria
inventa para lá das memórias
para lá do sentido que possui
para lá da volta que dá ao mundo
para lá da montanha que sobe
para lá do mar em que mergulha
para lá de si para lá de tudo…
Tempo preciso, tempo necessário.
Uma flor que espreita empoleirada no muro…
Tanto silencio, estranho silêncio
a lembrar a sepultura em que estás deitada…
Vem-me com a tua serenidade diária
amiga dos meus tempos incompletos
dos meus gestos irreflectidos
suster o meu corpo de bebida entorpecente…
Traz-me a tua a tua imagem involuntária
que todos os dias espreito
todos os dias rezo na minha oração inacabada
como os olhares das filhas que me pedem
ou o beijo da mulher que me envolve…
Vem, vem dizer-me que não me engano
que não me posso enganar
que sou como o lusíada guerreiro
como o lusíada navegante
como o lusíada involuntário de ser lusíada
involuntário de ser alguém, involuntário de ser lido…
Vem até mim, ventre histórico, ventre de onde vim
ventre da minha saliva e das minhas lágrimas
ventre dos meus planos sempre inclinados
das minhas suposições incompletas
das minhas realidades risonhas, mas dispersas
do fumo que fumo sem fumar
do olhar que me deito e que não sinto
de tudo o que me parece triste mas que é real.
Tanto tempo, tanto dia sem realidade alguma
por detrás do meu silêncio
de olhos a lembrarem olhos
livros a lembrarem estátuas
poemas a lembrarem lágrimas
por ti por ele por nós!...
Que o tempo avance e se complete
mas que venha!
Venha como tu como todos a quem espero
e que não sendo muitos serão os bastantes
os verdadeiros os únicos
aqueles que terão a palavra para explicar
porque foi escrita…
Na incógnita noite os restos do poema…
A precisar de ser tempo
a ter de ser espaço…
Desenho quadro casa grande
cavalo selvagem sem domador…
E se for preciso
redigo o que alguém disse:
- Batam em latas!
Toquem no grande concerto abstracto
mas… batam em latas!
Firam o choro se o houveras lágrimas se caírem
a dor que alguém sinta o luto que possam tomar…
Brinquem com a bola pequena, vermelha e branca.
Atirem-na para as nuvens
para que se possa perder…
Foi o meu brinquedo de ouro rasgado
com que brincava todos os dias
com que saltava a janela do rés-do-chão
e jogava na praceta.
Hoje, tem a cor disforme do passado
a lembrar a incógnita noite
a perseguir os rastos do poema!...
José Manuel Capêlo, Odes submersas, Átrio, 1995.
As luzes a irem e a virem
por entre o turbilhão do cansaço…
O gosto das madrugadas passageiras encontrando forma
no ninho de antenas verdes, em risos de molduras geométricas
pagamentos diários - sem salários fixos –
enquanto o turbilhão do proxeneta procura na almofada
o licor acre duma noite de insónia compensadora.
Como se não bastasse emoldura-se o cigarro
cospe-se para o meio da rua
onde todos passam e ninguém pára
dado que parar
seria que cuspissem em nós-mesmos
os próprios dos próximos.
Em feliz coincidência
(a consciência em espirais e gritos
umas vezes roucos outras alegres)
a caneta que escreve em círculos
ou semi-círculos de enfeite
obra rara em deuses adormecidos nas estantes…
Pegando num deles
pode-se abraçá-lo ou rasgá-lo
com o mesmo destemor com que se o lê…
Poderá importar pouco
dado que o pouco poderá ser o muito
que nada temos. E tudo isso é mau
como o bom seria olharmo-nos de vez
arranjarmos uma lua de mil aspectos
crescermos no azul e espraiarmo-nos no fundo verde…
Poderíamos eventualmente deixar de ir
à confeitaria para comprar bolos
seguir um caminho paralelo
que não nos levasse a qualquer lado
- como à imensidão dum prado
onde não pastassem cabras -
ou a um rio onde não houvessem pedras
formas esguias da nossa perplexidade incomensuravelmente diminuta.
Afirmaríamos por outro lado que as mãos
eram arredondadas, próprias de desenhos rítmicos
os cigarros fracos, próprios de desenhos concêntricos
as vozes arrefecidas, próprias de desenhos iluminados pela noite
os copos cheios, próprios da boémia desaprendida…
Como se nada ficasse
gastaríamos as mãos nas paredes
os cigarros nas bicicleta as vozes nos bordéis
os copos no fígado
- onde tudo seria guardado, como que num cofre
sem chave, sem segredo, sem guarda –
apenas lembrando que lá
o tínhamos posto…
Ainda assim, a barbacã seguiria os contornos
tal como o rio, as margens
a cidade, o tempo
o meu olhar, a distância
a face da menina, o brinquedo por andar
a bicicleta, o fumo das chaminés
a tua presença, o movimento das tuas ancas
as aves, as antenas verdes
as nuvens, um mar fluvial
os remos, as braçadeiras do poder!
Qualquer função seria a minha a tua
como um interruptor de luz
enche a casa de gemidos
ovais empastados solenes
composição duma partitura inacabada
ópera de falsetes e acrobatas
circo de marianos e margaridas…
Como se tudo fosse um mundo único
bastava-nos levantar as mãos
para pedirmos perdão pela nossa inocência
escalavrada e grosseira
painel de tinta arremessada
ombro encolhido por murro directo
boca aberta gritando surdez
cigarro na mão
a atestar o vício.
Todas as aparências tinham características…
Sonâmbulas e ásperas
mal disfarçadas e rudes…
imaginavas-te diferente
por seres exactamente diferente
de todos nós
nós os que nunca parecemos iguais
A tua voz brincava com o ar
explodia em malícia
afogava a tua vivacidade
repreendia quem se lhe opusesse
e habituara-se a dizer…
- Vamos daqui!
Terias a certeza de seres tu quem mandavas
ordenavas brincavas com os nossos olhares
incrédulos mal postos
na tua figura de rainha anã
irrequieta ágil desempoeirada
nas calosidades que te cercavam os nós dos dedos
todos bem iguais à tua inteligência
irrequieta ágil desempoeirada
como os estridentes dentes
que salientavas
no fácil riso que te envolvia.
Bastava que tudo tivesse a proporção
tão necessária para ser luz
aparecesses longínqua e caminhasses directa
ao ponto de encontro
em que nos situávamos.
Não era preciso mais que uma palavra
um gesto
ou um adeus
para olharmos tudo diferentemente.
Rápido como o vento, só o nosso gesto…
Parede encostada à outra parte do quadro
que nos olha ao comermos bolos
ri ao fazermos caras
entristece-se ao ver-nos seguir sem encontro
só porque não está em nós podermos ganhar…
Na incógnita noite os rastos do poema…
Quem os virá buscar, enquanto ainda forem chama
luz, visão do dia, semente e pensamento?
não importa a que distância…
Mas venham!
Tragam as vossas bandejas de qualquer prata
as vossas mãos de qualquer pele
a vossa imagem de qualquer corpo
o vosso sentido de qualquer fim
as vossas ideias de qualquer ilusão…
Mas venham!
Com a eternidade que não vos obriga
a serenidade que não vos realça
a amizade que não vos impõe
a certeza que é própria de todos
a função que é dita de alguns…
Mas venham!
Tragam o espaço e os planos
as vossas cabeças e as vossas bocas
os pincéis e as paletas
a sombra e a claridade
as mesas e as portas
os museus e os bordéis
as mulheres sérias e as que o não são
as vossas filhas e as vossas empregadas.
Tragam as lembranças e o presente
os sãos e os doentes
os mendigos e os fidalgos
o forcado, o cavaleiro, o matador
todos eles com o touro à cintura
já que a arena é bem grande
e todos têm lugar em pé…
Mas venham!
Venham sem cerimónia, sem requintes
naturalmente
como natural é o céu e a voz encoberta
para lá da montanha.
Lembrem-se que todos têm o seu presente e o seu fim…
Que tudo cresce e tudo passa…
Que as noites são dias que se põem
e as manhãs luzes que se despregam…
Lembrem-se que são mortos os que pensamos
mas que são os vivos, os que nos amam…
Que tudo é igual
desde que não se mostre diferente…
Que uma hora não é igual ao tempo
mas que o tempo é uma hora…
Mas venham!
Tragam cânticos negros e odes triunfais
dispersão e mulheres de luto
o antónio-só clepsidra e as sombras e as vozes
cézanne van gogh picasso modigliani dali
almada amadeo bual lud seixas osório
um exercito de não soldados que lutam pela eternidade.
Mas venham!
Tragam nas mãos
rosas, cravos, manjericos, orquídeas
o que quiserem…
Mas venham!
Já que o mundo é mundo e o homem se acaba…
Já que a mão que acende cigarros, também acende fogos
e toca em botões e propulsiona ogivas
e não pára e não pára e não pára…
Parar, é como não saber! Mas o homem sabe
e sobe e desce e avança e recua
e obstina-se e cria
inventa para lá das memórias
para lá do sentido que possui
para lá da volta que dá ao mundo
para lá da montanha que sobe
para lá do mar em que mergulha
para lá de si para lá de tudo…
Tempo preciso, tempo necessário.
Uma flor que espreita empoleirada no muro…
Tanto silencio, estranho silêncio
a lembrar a sepultura em que estás deitada…
Vem-me com a tua serenidade diária
amiga dos meus tempos incompletos
dos meus gestos irreflectidos
suster o meu corpo de bebida entorpecente…
Traz-me a tua a tua imagem involuntária
que todos os dias espreito
todos os dias rezo na minha oração inacabada
como os olhares das filhas que me pedem
ou o beijo da mulher que me envolve…
Vem, vem dizer-me que não me engano
que não me posso enganar
que sou como o lusíada guerreiro
como o lusíada navegante
como o lusíada involuntário de ser lusíada
involuntário de ser alguém, involuntário de ser lido…
Vem até mim, ventre histórico, ventre de onde vim
ventre da minha saliva e das minhas lágrimas
ventre dos meus planos sempre inclinados
das minhas suposições incompletas
das minhas realidades risonhas, mas dispersas
do fumo que fumo sem fumar
do olhar que me deito e que não sinto
de tudo o que me parece triste mas que é real.
Tanto tempo, tanto dia sem realidade alguma
por detrás do meu silêncio
de olhos a lembrarem olhos
livros a lembrarem estátuas
poemas a lembrarem lágrimas
por ti por ele por nós!...
Que o tempo avance e se complete
mas que venha!
Venha como tu como todos a quem espero
e que não sendo muitos serão os bastantes
os verdadeiros os únicos
aqueles que terão a palavra para explicar
porque foi escrita…
Na incógnita noite os restos do poema…
A precisar de ser tempo
a ter de ser espaço…
Desenho quadro casa grande
cavalo selvagem sem domador…
E se for preciso
redigo o que alguém disse:
- Batam em latas!
Toquem no grande concerto abstracto
mas… batam em latas!
Firam o choro se o houveras lágrimas se caírem
a dor que alguém sinta o luto que possam tomar…
Brinquem com a bola pequena, vermelha e branca.
Atirem-na para as nuvens
para que se possa perder…
Foi o meu brinquedo de ouro rasgado
com que brincava todos os dias
com que saltava a janela do rés-do-chão
e jogava na praceta.
Hoje, tem a cor disforme do passado
a lembrar a incógnita noite
a perseguir os rastos do poema!...
José Manuel Capêlo, Odes submersas, Átrio, 1995.
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