segunda-feira, 20 de abril de 2009

Qualquer realidade é como uma andorinha à procura do beiral da Primavera

pintura de Albrecht Dürer


Nada (mais) resta a não ser o tempo fazedor de passagens fáceis, jardins públicos, mãos abertas, olhos nos olhos dos que comem pão amassado pela dureza das árvores, pelo contorno dos lábios, pela facilidade da voz. E há o sol, imenso roteiro de peregrinações, ruas paralelas, alianças nos dedos, tapetes de relva verde e o ocaso dos bancos dispostos ao acaso. E o mar de ondas vertigens, pássaros salgados, gestos de espuma e rosto de rochas esfíngicas, esculturas marsupiais de ventre para fora a lembrarem sombras apanhadas ao vento. E há ainda, o rosto que se espanta de encontro ao soluço do dia, de encontro à mentira da boca, de encontro ao silêncio do gesto que encobre a alma. Nada resta, a não ser, sonhos! Há passagens no céu que o demonstram, frutos na terra que os habitam, palavras que os espreitam sem lhes tocar, como se toda e qualquer realidade conseguisse apanhar um sonho na palma da esperança, vã. Qualquer realidade é uma andorinha à procura do beiral da primavera, quando as folhas se erguem ao vento, ou quando, o mar se recolhe mansamente à queda areia. No sítio da primavera, há sempre uma árvore levantada no meio da impossível vegetação. As rochas suam com refluxos de espuma e o grito que se ouve, é menos sonoro porque se não distingue na folhagem do vento. Nem no entercalado do casario. Juntam-se os (i)mortais, enquanto homens: nados, voltados de barriga para o lado, completamente cheios, no grão da publicitária esperança.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

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