segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Ode natural ou da heroicidade

pintura - Cervantes de Salvador Dali

As vozes lapidares que se erguem!...
Estas são as sementes que me maçam
e eu não tenho nada a haver com a terra.
Se quiserem, destruam os prédios, fechem as lojas
rebentem com o dinheiro, acabem com o rio
estrangulem as árvores, garrotem os arcos
estoirem com o movimento
se é isso que está certo.
.
Quem está mal, sou eu, e não me mudo!
Isso é o que vocês queriam
senhores dos anfiteatros e das arenas
dos palcos dos mundo
dos camarotes das praças e dos estádios
dos teatros, dos cinemas e dos coliseus
mas isso, não vos dou.
.
Quero estoirar sozinho, mas estoirar bem.
Engolir o sangue que meu deu minha mãe
o sexo que me deu meu pai
as palavras que dei a mim mesmo
as que dei aos outros
as que não dei a ninguém.
.
Tenho correntes de ouro e anéis de marfim
livros sagrados e copos de cristal
mesas de ébano e cadeirões de veludo
janelas à minha frente e ruas sob mim
dinheiro de papel e dinheiro de latão
o sofrimento dum cego que toca a concertina
a tristeza dum pobre que toca ao coração
o choro de um vadio que se enrosca na noite
o silêncio pesado no véu duma viúva
a agonia lenta de dois filhos órfãos.
Quem está mal, sou eu, e não me mudo!
Quero estoirar sozinho, mas estoirar bem.


José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

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