pintura de Carlos Botelho
Todas estas manhãs vêm com as mesmas sombras e segredoscom as mesmas árvores e fachadas, com as mesmas janelas
os mesmos vasos de plantas caindo dos parapeitos
o assomar natural dos moradores enfrente, a verem
o que é que vai por essa rua de habituação.
A Pascoal de Melo é uma rua habituada por dois sentidos:
o que desce no sentido do largo de Dona Estefânia
e o que sobe para a avenida Almirante Reis
ou o vice-versa, que é tão igual quanto o anterior
pois tudo lá está, até o jardim Constantino
cada vez menos a ser jardim e cada vez mais a ser Constantino.
Além de habituada é habitada, pelo menos por mim
que já lá moro há mais que quatro mãos e meia
e que pelos vistos teimarei em morar. Não porque desgoste
mas porque nela estou habitado. Em todas as manhãs
todas as tardes, em todas as sombras e segredos
com o olhar dos vizinhos enfrente a assomarem
naturalmente para a rua de dois sentidos: o que desce
e o que sobe na minha paciência de jardim Constantino.
Assim, neste trautear de passadas que passam sem se cruzarem
assoma pelos cantos da boca, um cigarro que uso
enxovalhado e gasto, naturalmente, mas feliz e contente
por me possuir diariamente os lábios, que é o normal
de quem me pretende de tempos a tempos.
Fixo nele o meu instinto de cobaia treinada
repito acelerado os cânticos que o velho bagaço me ensinou
e corro para a minha rua de mãos abertas ou cerradas
a fustigar o vento que por mim se cruza. Lá para trás
os grilos cantam nas sobrancelhas dos diáconos
com as mãos colocadas, uma, na falda da sotaina
a outra, na trabalhada madeira de múltiplos e confusos segredos
olhos no pequeno vitral que desponta do sacro ofício
e toda a mente a embebedar-se do espanto dos crentes.
Para já, resta-me a rua que dá para Arroios
para os passos do nupcial Camilo, transportando Ana
placidamente de encontro à mão secreta do encontro;
de Gomes Leal, remendando o quarto de um amigo
por uma noite ou muitos dias (conforme a fase da Lua);
de Fernando Pessoa, de casa de uma tia que tinha por dever
ir passar férias esotéricas à Suíça ou aos Alpes
não se esquecendo de avisar o sobrinho de que lhe
continuasse a enviar cartas de pressagiante ocultismo;
ou, tão pouco, de Raul de Carvalho, em descidas
e subidas, com a artereosclerose a enegrecer-lhe as veias
construindo em Elsinore, o canto oculto da mulher.
Da minha rua, saem fascinados os ecos da noite.
Os caminhos são idênticos aos caminhos passageiros
aos múltiplos cigarros acesos, às chamas soerguidas
nos contornos dos alabastros de casas palacianas.
Restam poucas, nas apagadas chaminés de fumo para dentro.
Espreito da minha pequena janela debruçada sobre as árvores
a minha rua de dois sentidos: o que desce e o que sobe
na minha eterna paciência de jardim Constantino
virado, sempre, na mesma posição; isto é:
e costas para o mundo dos pardais que é a parte da frente
de todos os homens que caminham como eu. Aparentemente!.
Todas estas manhãs vêm com as mesmas sombras e segredos
os mesmos vasos de plantas caindo dos parapeitos
o assomar natural dos moradores enfrente, a verem
o que é que vai por essa rua de habituação.
A Pascoal de Melo é uma rua habituada por dois sentidos:
o que desce no sentido do largo de Dona Estefânia
e o que sobe para a avenida Almirante Reis
ou o vice-versa, que é tão igual quanto o anterior
pois tudo lá está, até o jardim Constantino
cada vez menos a ser jardim e cada vez mais a ser Constantino.
Além de habituada é habitada, pelo menos por mim
que já lá moro há mais que quatro mãos e meia
e que pelos vistos teimarei em morar. Não porque desgoste
mas porque nela estou habitado. Em todas as manhãs
todas as tardes, em todas as sombras e segredos
com o olhar dos vizinhos enfrente a assomarem
naturalmente para a rua de dois sentidos: o que desce
e o que sobe na minha paciência de jardim Constantino.
Assim, neste trautear de passadas que passam sem se cruzarem
assoma pelos cantos da boca, um cigarro que uso
enxovalhado e gasto, naturalmente, mas feliz e contente
por me possuir diariamente os lábios, que é o normal
de quem me pretende de tempos a tempos.
Fixo nele o meu instinto de cobaia treinada
repito acelerado os cânticos que o velho bagaço me ensinou
e corro para a minha rua de mãos abertas ou cerradas
a fustigar o vento que por mim se cruza. Lá para trás
os grilos cantam nas sobrancelhas dos diáconos
com as mãos colocadas, uma, na falda da sotaina
a outra, na trabalhada madeira de múltiplos e confusos segredos
olhos no pequeno vitral que desponta do sacro ofício
e toda a mente a embebedar-se do espanto dos crentes.
Para já, resta-me a rua que dá para Arroios
para os passos do nupcial Camilo, transportando Ana
placidamente de encontro à mão secreta do encontro;
de Gomes Leal, remendando o quarto de um amigo
por uma noite ou muitos dias (conforme a fase da Lua);
de Fernando Pessoa, de casa de uma tia que tinha por dever
ir passar férias esotéricas à Suíça ou aos Alpes
não se esquecendo de avisar o sobrinho de que lhe
continuasse a enviar cartas de pressagiante ocultismo;
ou, tão pouco, de Raul de Carvalho, em descidas
e subidas, com a artereosclerose a enegrecer-lhe as veias
construindo em Elsinore, o canto oculto da mulher.
Da minha rua, saem fascinados os ecos da noite.
Os caminhos são idênticos aos caminhos passageiros
aos múltiplos cigarros acesos, às chamas soerguidas
nos contornos dos alabastros de casas palacianas.
Restam poucas, nas apagadas chaminés de fumo para dentro.
Espreito da minha pequena janela debruçada sobre as árvores
a minha rua de dois sentidos: o que desce e o que sobe
na minha eterna paciência de jardim Constantino
virado, sempre, na mesma posição; isto é:
e costas para o mundo dos pardais que é a parte da frente
de todos os homens que caminham como eu. Aparentemente!.
José Manuel Capêlo, Odes Submersas, Átrio, 1995
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