segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Ode submersa

pintura de Almada Negreiros

para o António Barahona da Fonseca


Cedo, beijo o crepúsculo nas manhãs das minhas frias mãos.
Se crio imagens, elas fogem-me num repente
como se o sono estivesse pronto a despertar
e a luz que nascesse, acompanhasse a madrugada
nos raios finos e amancebados de tons de oiro.
Podia lá ser o crepúsculo que me agitava!? Podia lá ser!
Paródias, tinha-as tido noite fora desde que encontrara
o plúmbeo vício de me cicatrizar nas esquinas.
Os agiotas e os efebos esvaziavam-me os olhos
procurando na rua, o difícil do meu caminho
entornado de suores, frios encantos a lembrarem
uma mala aberta de recordações por rever
com o fantasma do grande prédio por detrás
que podia ser a frente de qualquer defeito.
Mas não. Era a parte detrás.

Olha o meu amigo Campos... Vai cedo à vida.
Passa no seu ar nervoso de engenheiro naval.
Acena-me um adeus - já que me reconhecera -
e afasta-se no seu passo ligeiro, habitual, de muitas preocupações.
Coitado de mim que olho o engenheiro Campos
cuja manhã, para ele, começou triunfal na Ode Marítima
ode submersa de contratempos e barcos que se agitam
comissários de bordo e amarras de corda
que não sendo manuelinas, são de ancoradouro
repouso de guerreiros na longa travessia do Suez
ainda mais e constante, por não passar pelo Egipto.

Não, não posso ser eu.
Tenho que me endividar pelas esquinas curtas do meu bairro
pois que as outras, estão demasiado afastadas
ou demasiado arredondadas pelos que lá passam.
Mas as do meu bairro conheço-as todas.
Ah! até mesmo os cães, como aquele rafeiro de cor amarelada
que vive por baixo do meu prédio à altura dum ladrar.
E não há ninguém a olhar por eles, nem por mim
dado que não preciso que me olhem como se olham os cães.
Aljubarrota nunca foi o meu quadrado
nem Aljube a minha cela. Tive-os diferentes
de diferentíssimas maneiras, em diferentes ocasiões
e posso gritar que nunca matei
nunca feri nos olhos, os que passavam sob o parapeito da minha observação.

Compêndios de heróis formei-os em criança
como qualquer criança o faz, a criar heróis
ante a luz morna do amanhecer inseguro
frágil trajecto da varanda dum rés-do-chão em salto para a praceta
que era o meu acordar de brincadeiras
o encontrar do dia todo e da noite que me fazia voltar para casa.
Hoje, que tenho outros vícios
não tenho Aljubarrotas ou Aljubes.
Tenho cotos de velas a olharem-me desafiantes
como combatentes de varas largas.

Ouve Caeiro. Que é feito do rebanho que nunca guardaste?
Tu que és bucólico, atormentado e doente, mestre de discípulos
tão geniais como o próprio mestre?
Onde encontraste essa tendência de criares em ti
um outro mundo, oculto de todos, até do teu Deus natural?
Ou não será ele a quem gritas?...
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol
Para que lhe chamo Deus? .Não será?
Tens a fragilidade e a doença duma manhã morna e cinzenta de Fevereiro

a consciência da cor em que a pedra tem parentesco
o gosto de que a pedra seja pedra e não seja estorvo
a admiração de descobrires a realidade das coisas em todos os dias
o de saberes que te chamam poeta materialista
aparte de tu-mesmo saberes que não és poeta! Vês?...
E que outra coisa não é um poeta senão aquele que vê?
Claro que tens razão. Não és poeta. És um supra-poeta da Natureza
fugindo da vulgaridade que encontras nos teus passeios
de sala para sala, livro para livro, pastor para pastor.
A realidade não precisa de ti. Mas toda a realidade precisa de ti, Caeiro!

E tu Reis, presumido e epiléptico, pai dos meus dias
que nunca se vêem porque nunca o são?
Será que Lídia, involuntariamente, te deixou?
Deixa meu caro, porque .o ritmo antigo que há em pés descalços
esse ritmo das ninfas repetido
levaste-o para o Brasil das mil e uma tonalidades de luz
passeando-o nas ruas do desaconchego de nuvens baixas
ruidosas e curvas, atravessadas e ilusórias.
Mas não faz mal, Reis. Surgiste no arquétipo de cirurgião
de mãos remendadas e nervosas, de óculos caindo sobre o nariz
bocas sobre o queixo, mãos sobre o vazio das ancas
efémero e desajeitado, rugindo na tua filosofia
da qual Dirceu de outra Marília.
Mas se te sinto em todas as noites antes das badaladas da meia-noite
é porque comigo dorme Neera, longe dos teus lábios
trespasse do tempo que este próprio me ofereceu
sem que tivesses a fortuna de a possuir.
Descansa Ricardo Reis, porque o ritmo antigo cai com o ramo alto
perante o arquejo de Apolo na curva azul
essa-mesma que os deuses concederam para me tornar crente.

Coitado do Campos que nunca chegou a ser ninguém.
Parecia sonhar e nunca dormia.
Apanhei-o muitas vezes a bebericar borracha dos cigarros que enrolava
metia nos lábios e fumava a pedir cheiro
acompanhado do fato roçado que nunca escovava.
Deixei-o uma noite em plena esquina da minha rua
- que era também a sua -
a mesma rua que subia e que descia quando saía de casa da tia
sem que desse por ela.
Rua formidável a nossa rua, não é Álvaro de Campos?
Tinha o aspecto de uma rua sem sentido
com um largo em cada lado e um jardim no meio.
Era esta a nossa rua. A rua dos desordenados
dos que nunca tiveram cama
mas sempre a dos que tiveram para ouvir e para dar.
É esta a rua da casa em frente uma da outra
que por sinal não tem nada de igual
mas que é tão igual como todas as outras-todas.
Pergunta-se tudo ao Campos que ele explica.
Eu tenho o dom de o escutar. Ele é engenheiro e eu aprendiz de mestre.
Falta-me saber coser. O Campos nisso, é entendido.
Entendes-me Campos? Explica lá como é que fazes?
Quando o Campos se põe a andar... nada feito.

Um dia, o Almada disse-me que ele era um mau engenheiro mas um bom poeta!

Perguntei-lhe como é que ele era um bom poeta
se punha a Tabacaria do outro lado de lá da rua?
Entretanto, o Pessoa-Fernando apareceu, meteu-me o seu braço no meu
e lá fomos a falar sobre o Campos.
Disse-me, tal como o Almada, que o Campos era um bom poeta
mas um incompreendido, tal como o Raul Leal ou o António Botto
o Mário Saa, o Ângelo de Lima ou o Mário de Sá-Carneiro.
Haveria de vir o tempo em que todos iriam dizer
que tinham conquistado o mundo sem precisarem de descer
pelas janelas das traseiras ou pelas portas dos manicómios
arrumar a vida e organizar o definitivo
que é o sorriso tímido para quem tem olhos de papel.
O que eu vou fazer, disse-me o Pessoa-Fernando, amanhã, amanhã já
é .organizar o Álvaro de Campos na mesma coisa que antes de ontem
- um antes de ontem que é sempre...

Cedo, beijo o crepúsculo nas manhãs das minhas frias mãos.
Não, não posso ser eu.
Hoje tenho outros vícios...

Ouve Caeiro!
E tu, Reis...
Coitado do Campos que nunca chegou a ser ninguém.

Há saudades nas pernas e nos braços
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.

Sou eu mesmo, que remédio! ...

José Manuel Capêlo, Odes Submersas, Átrio, 1995

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