Não penses com o que te digo.
Sonha!
Mas sonha com o que tiveres nos lábios
o que sentires na garganta
o que te invadir o sangue
o que te andar nos pés
o que tiveres nas mãos.
Sonha!
Sonha com o pesadelo dos dias
as mudanças de luz
os cães vadios
a falta de cama
as esquinas soltas
os olhos dos outros.
Sonha!
Sonha com os gestos habituais
com os rituais
com os punhais
com os demais
com tudo o que quiseres
até com os pardais
que são como eu, como tu
espera
imenso vazio
forças do tempo
vendavais
rosto de um cigarro.
Sonha mas inventa
diz que todos os segredos são sonhos
que todos os sonhos são actos
que todos os actos são ruas
que todas as ruas são gestos
que todos os gestos são olhares
que todos os olhares reproduzem
tudo o que a voz grita
é grito teu, teu, teu, teu!
Sonha!
Sonha criança da minha infância
tão igual à distância
que percorri nos meus passos.
Tão igual à criança que procurei
no meu gesto.
Tão igual à criança que nasceu
em mim.
Sonha!
Sonha a igualdade que não existe
a árvore isolada, só e triste
a imagem que é real e que persiste
onde só a nuvem paira
ante o eco do céu aberto.
Sonha!
Sonha como a dizer que o eco é vago
e a tarde quente
e a manhã azul.
Que tudo o que imaginas para lá
é o lado contrário da terra
e o oposto do desassossego.
O teu mundo é a tua mão aberta
o teu lado de riso
a tua boca de espera
o teu rosto de ânsia
o teu instinto decente.
Sonha!
Sonha como quem mais ordena
como quem transporta na mala a tira-colo
todas as lembranças do mundo
as recordações do presente
dado que o passado é passado
(tão passado como ido)
e tu vives
de óculos escuros a taparem-te os olhos
de mãos brancas a cobrirem-te os ossos
de olhos serenos a enunciarem-te imagens.
Sonha!
Sonha com tudo o que quiseres
o que te apetecer
o que a bebida te trouxer
e manda para a vida
a putice do destino
o inferno das horas
o pesadelo da obrigação.
O teu anjo é o sorriso.
Brinca com ele
emoldura-o
põe-no na parede
ou entretém-no em ginástica rítmica.
O melhor do mundo
- para além das crianças-
é o teu sorriso
os lábios cheios de vida
cheios de ti
cheios dos outros.
Sonha!
Sonha!
Sonha verdadeiramente
sonha com todas as tuas decências e frustrações
com todos os delírios e sonos
com casas suspensas e mágicos novembros.
O teu mês é Janeiro!
Acorda nele o teu rosto
e a neve terá outra luz
outra força
outra natureza.
Sonha!
Sonha como quem acorda
já que a terra passa e o sonho fica.
José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986
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