quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

É de noite que me visto. E dispo. E consumo.

pintura de Joseph Wright of Derby

É de noite que me visto. E dispo. E consumo.
É de noite que os meus braços sobressaem dos ombros, os meus olhos do rosto e o meu pequeno sorriso do silêncio e da escuta.
É de noite que a música ressoa acutilante e total, evasiva e penetrante, força humana escondida por detrás de cada delírio pleno e perfeito.
É de noite que as silhuetas são marcadamente breves, já que as sombras as identificam e definem.
É de que o choro se aquece e se transfigura; entrega em gelo ou se desprende em neblina.
É de noite que tudo se sublima, se torna mais visível, mais perfeito, mais nítido, como o sono das crianças e as esperas dos velhos. Mesmo a memória, que é vária e nunca acaba.
É de noite que abro os braços e me apaixono.
É de noite que junto seis candelabros com todas as velas acesas, disponho uma infinidade de copos e rego de champagne a minha fantasia, a minha imaginação, a minha cortesia. A minha maneira de receber. Bem ou mal, mas a minha! Deixo a mesa cheia de-mim e do gosto dos outros. Deixo as cadeiras vazias para quem se queira sentar.
..................Nos candelabros, as velas nunca se apagam,
..................nunca se gastam. Na minha casa, à noite,
..................tudo é suicídio, porque a minha memória é
..................um grande abraço envolvente, transportando-
.................-me não sei donde para onde. Apenas fantasia?
É de noite que as sensações se materializam, que podemos enfrentar os outros nos olhos, nas mãos, nas bocas, nos copos. É aí que a navalha aquece o sangue, o grito sai mais nítido, o corpo cai mais pesado, o vento se enrosca mais perto, a junção é mais breve. Mesmo o medo, que sendo a razão de se ser, é a alegria contrária de nos possuirmos. Fantástica a noite de todos os dias! Com todos os seus aspectos!
É de noite que vejo nascer o mar com as suas fronteiras de várias cores, com os seus olhos de várias luzes, com os seus corpos de várias formas, com os seus gritos de vários tamanhos.
É de noite que acordo, logo cedo, quando os barcos dormem no calado rumar das gaivotas, empinando o voo junto ao coração da terra.
É de noite que tudo vive e adormece.
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José Manuel Capêlo, Odes Submersas, Átrio, 1995

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