segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Se o meu silêncio fosse a traição de-mim


pormenor de painel do Jardim das delicias, de Hieronymus Bosch

a Miguel Torga

Se o meu silêncio fosse a traição de-mim
como a nuvem que, fugidia, apaga o sol
retornaria ao lugar constante onde me encontrei
em primeiro e último lugar de nascimento.
.
Se a terra fosse tudo isso que piso e seguro
com o mesmo à-vontade com que ergo as mãos ao vento
deixaria os frutos nascerem debaixo dos pés
com a mesma alegria com que afago o eco.
.
Se tudo fosse, apenas, silêncio e escuta e desordem
reuniria o meu exército de fantasmas e com eles
percorreria as ruas vazias de sons e figuras.
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fugiria aos lugares comuns e encheria de certeza
as vagas plenas do oceano, que manso avança
e tenebroso se refugia para lá das areias móveis.
.
José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

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