sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

o inverno inverso das estradas

Inferno - Centauro, William Blake


Quando as páginas brancas forem remendos carbonizados
quando da rua lavada emergir o estrume lixo
quando do verde jardim as crianças se afastarem
quando o mar invadir a grande praça e arrancar
os frágeis bonecos emparedados no pedestal
quando as aves gritarem e os homens se afligirem de vez
quando tudo for negro e a terra fogo
então
oh! santidade absoluta dos actos
oh! irritante aspereza dos cortinados
oh! insensível brandura dos alvos cabelos
oh! demoníaca insegurança de todos os gestos
então
deixará de haver mundo para haver inferno.
Os anjos aparecerão vestidos com vestes ígneas
remendo de ossadas e sorrisos lôbregos
pés de vento e mãos de espadas
tão fortes e cruas como a mão que sustem
o inverno inverso das estradas do mar.

Fujam-fujamos onde a sombra não nos inquiete
onde o calor venha devagar e a onda rápida
(quer os livros estejam fechados ou abertos
o cimento mole, a terra ressequida, as luzes circulares)
onde olhando as unhas possamos ver as nódoas
da nossa magia destrutiva e assassina.
Fujam-fujamos para todo o lado, menos...
Menos, para aqui, porque do outro lado
está a imagem que nos envolve
sem termos consciência de que é ela que nos contempla!



José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

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