segunda-feira, 7 de junho de 2010

Hoy el Mar es Mas Azul Que el Cielo...

poema de José Manuel Capêlo

domingo, 6 de junho de 2010

pintura de Plínio Palhano


A GLÓRIA DA AMIZADE EM CAPÊLO

Ângelo Monteiro

Num mundo cada vez mais instável e inseguro, em que já não se sabe o que é realidade, nada mais prodigioso do que uma amizade que ultrapasse a contagem dos dias e sirva de justificação para a própria existência. Assim foi a amizade para José Manuel Capêlo.
Dono de um caráter generoso — como o dos grandes guerreiros da vida e do pensamento — tanto em seus cuidados quanto em suas expectativas em relação aos amigos, dois dos seus gestos, entre outros, ficaram em minha lembrança. O primeiro quando, preocupado com o meu relativo ostracismo, resolveu me publicar, por sua própria conta, através da Aríon, sua editora em Lisboa, em 2002, sem, em nenhum momento, comentar comigo sobre os custos da edição. O segundo quando voltou, sobre dezenas de quilômetros já rodados em direção a Madri, para resolver, em Lisboa, o problema de visto de um amigo comum que tinha vindo fazer um doutorado em seu país.
Com sua morte — logo no dia seguinte à sua última mensagem eletrônica por mim recebida — se dissolve o vínculo mais vivo que me unia a Portugal e, através dele, à sua grande poesia. Pois Portugal, enquanto país que preza a própria memória, fez de José Manuel Capêlo — o poeta e aventureiro do espírito, como lhe chamei certa vez — o herdeiro simbólico de dois povos: o dos profetas e o dos navegadores.
E a amizade, assim como a poesia, é sobretudo o reino da memória: todas as coisas, uma vez existentes,em ambas permanecem, pois sem Mnemósine as nove musas, e entre elas a da poesia, não conseguiriam se salvar da mais completa mudez. E entre mim e José Manuel Capêlo a poesia era inseparável da amizade, e foi essa correspondência, que delas resultou — permeada pela vastidão do Atlântico — cheia de afinidades, surpresas, variações de humor e idiossincrasias que, como um longo fio de vida e de memória, se rompeu para sempre. E sem palavras me deixou, além das ciladas da vida, ante as ciladas mais insuspeitadas da morte.
Nada mais triste — mais até do que uma relação rompida em vida — do que uma correspondência interrompida pela morte. Passamos então a saber que mais importante do que aquilo que dizemos é aquilo que ficou por dizer. E o que ficou por dizer é, para todos os efeitos, algo que nos ultrapassa. É quando o peso da brevidade de tudo nos alcança com seu máximo poder de aniquilamento.
Atingimos, finalmente, a consolação de intuir que a glória da amizade está na sua singularidade. Um amigo nunca pode ser repetido, portador de uma unicidade não encontrável em mais ninguém. Ninguém, portanto, vai repetir Capêlo na cadência da sua voz carinhosa, em sua gentileza, em seus dons de sedução e em seus rompantes de euforia ou de generosidade, para lá dos momentos de tristeza e de irascibilidade que, por vezes, o acometiam, fazendo com que seus olhos se enchessem da fúria dos mares e sua voz, de belo timbre, se transmudasse em vibrações de tormenta...
Gostava, sobretudo, — ora com ares transfigurados, ora entre gargalhadas e temores, — de partilhar seus melhores sonhos. Pois, além de poeta, com diversas obras editadas, fez-se, também, ensaísta e historiador, como autor de um alentado volume sob o título de Portugal Templário, em que revela uma profunda paixão pela história gloriosa dessa Ordem dissolvida, de maneira cruel e traiçoeira, pelo conluio entre um papa pusilânime, Clemente V, e um rei salafrário que atendia pelo nome de Felipe, o Belo, e reconstituída depois, sob nova roupagem, na Ordem de Cristo, no reinado de Afonso I, em Portugal.
Não por acaso terminou seus dias em Campo Maior, um dos redutos mais famosos da tradição templária no Alentejo, cidade fronteiriça à Espanha. Entre “a substância das coisas e o enredo dos homens” ele pôde dizer num magnífico poema à sua tia-madrinha Isabel Gonçalves Capêlo: “a soma da realidade da vida desta terra que pisamos e guardamos/é a existência: a eterna lembrança feita, na visão da sombra e da luz”.
Poderia, mesmo agora, quando se encontra no além de nós, dizer como Dom Quixote: “O meu repouso é o campo de batalha”. E a sua luta de templário remanescente continua, mas já sob os beijos da eternidade.

Recife, 03 de março de 2010

Artigo escrito pelo professor de Filosofia *Ângelo Monteiro, poeta e ensaísta,