domingo, 30 de novembro de 2008

Quem correu comigo ao longo do rio

pintura de Thomas Gainsborough


Quem correu comigo ao longo do rio
e se transformou em mar?

Como o longo tardar das horas
torturam-se as ideias tornadas inutilidades:
como fábricas de ilusões e coisas mais.
Caminhos de impossíveis se avizinham e mágoas crescem
- como daninhas ervas, repentinas e frescas
no seu esplendor de criaturas renovadas.
Cegos estamos, ou continuamos a querer estar
porque as legiões de humanos não nos abandonam
e teimam em cercar-nos irremediavelmente.


José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

sábado, 29 de novembro de 2008

Era de noite!

pintura de Vincent Van Gogh



Era de noite!
Como sempre, foi de noite.
Essa luz, única, eternamente minha e dos deuses
que nos criaram em seu louvor e imagem
porque de-nós necessitam. Depois...
.
Vieram as luzes e os cânticos!
.
José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Falar-te-ão de mim, mas não os homens que hoje me erguem

pintura de Gustave Moreau


Falar-te-ão de mim, mas não os homens que hoje me erguem
nesse falso altar de amizade sem sentido, despropositada
de algum interesse escondido. Já hoje não será o dia
em que os homens cumprem, porque hoje é nascer
para um amanhã que me elucida e não desmente.
Lembra-te que as palavras são os olhos de sempre
porque só elas são os ventos da nossa grandeza
desta nossa miséria desencantada e gasta.
Lembra-te que é com suor que imaginamos sonhos
e desejos e fés e as camas longas do nosso delírio
a suspenderem-se da reunião da espera inaproveitada.
Lembra-te que, sendo a Hora, não é o tempo!



José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

os teus olhos

Fada, de Sophie Gengembre Anderson


Os teus olhos são grandes jardins
cobertos de flores a taparem sombras...



José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

depois de um jantar

Natureza Morta de, Willem Claesz Heda

a RAUL DE CARVALHO


Foi farta a noite ...
Chegámos a tua casa. O frio batia
de encontro às persianas fechadas.
O quarto? ... Sempre o mesmo.
Era uma das tuas noites más ...
Despi-te. Cobri-te.
Deixei-te meio adormecido.
Não precisavas de mais nada
a não ser
os necessários comprimidos
que te aguentavam o coração
ou, todos os amigos
de que precisavas e não vinham
ou, o grande amor que há dentro
da tua alma refugiada no pano de pó.
Até amanhã, Raul
ou, até nunca! ...


José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

terça-feira, 25 de novembro de 2008

a comunicação da tarde

pintura de Wassily Kandinsky


é alto e louro. um gigante de grandes óculos
a cobrirem-lhe o nariz correcto e longo. gagueja pela
fluidez de ideias múltiplas, pela facilidade de poder
dizer que o tempo é um grande poder de identidade. varia
a tragédia e alonga pela mesa alta os seus longos
braços longos. busca a voz e respira-a. fala para-si
como se falasse para os outros. bebe, a espaços, a água
do copo que alguém, caridosamente, lhe pôs à frente
enquanto fala. como que por intenção, os seus silêncios
devastam o silêncio da assistência. só então repara
em-si. e deixa de gaguejar. James Houlihan sentara-se.


José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

como se tudo fosse antigo e único

pintura de Jean Marc Nattier

arranjei um coração à porta da tua casa, quando, com a tua inocência, vieste á entrada, apareceste esplêndida e me acompanhaste à sala com o sorriso de quem leva o voo da águia ao cume da montanha e o explica às nuvens. depois, tudo foi mais simples, tão simples como o plano da mão que aperta o fundo da noite sonâmbula e idêntica nos espectros ou nos vultos que se prolongavam pela infinidade das sombras e que dialogantes, se explicavam nos gestos breves, nos ecos surdos, no rútilo dos espaços.

contigo fugi às estrelas e às escadas de outros planetas, que me chamavam e me conduziam - porque aqui é a Era do Aquário - com a estrada em frente e as catedrais de pânico, de entradas plenas e escadarias bravas, ante os olhos de serpentes a destaparem olhos de mulheres,


quando me descobriste, fui ao fundo do teu corpo e inundei de sémen o antro do teu virginal delírio, o rosto da tua angelical alegria, os desejos da totalidade das tuas formas, porque se alguma coisa houve a dizer ou a chamar, seria o vaso largo onde bebemos o nosso encontro.


a partir daí, lavamos as mãos e benzemo-las no fundo dessa noite, sonâmbula e idêntica, como se nada mais houvesse, senão o conjunto das nossas bocas, dos nossos modos ofegantes, dos nossos suores vivos, dos nossos dois corpos-dois, num conjunto único e indivisível.

por detrás soaria, equânime, a noite fácil e sublime no recorte dos dias anteriores e nos desejos seguintes, que por serem presentes eram futuros e eternos e cheios como se a intensão fosse antiga e única.

desde que o cheiro do teu corpo me inundou
apenas me resta o silêncio da tua espera.


José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

domingo, 23 de novembro de 2008

A alma é um grande nevoeiro na terra de ninguém


Blue Rigi, de William Turner


A alma é um grande nevoeiro na terra de ninguém.
Esquecê-la, é inventar a luz por detrás duma grande parede
invisível e imóvel. A alma!...
Segredo guardado pelas sete chaves do instinto
pelos seios de uma grande duna
pelas forças de um gesto encoberto e derradeiro.


José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

sábado, 22 de novembro de 2008

vem, amanhã

Leda e o Cisne, de Theodore Gericault


Como
se o alarido é a mão direita da crítica?
Contra os ecos sonantes do jacto
só podemos apor
os nossos dedos contra os ouvidos
os nossos olhos contra as nuvens
e um pouco do nosso sorriso
contra a distância.
É fácil falar-se de amor
(tão fácil falar-se de amor!)
acreditar que o encontramos no carregar do botão
nas margens opostas ao nosso silêncio
no eco em penedias de contrafortes e serras
na bacia larga dum mar em ondas
na cinza quietude dum céu pleno
ou na baixa verde duma floresta virgem...
É fácil falar-se de amor
tão fácil
como acreditar que amar é beleza
um império construído com os nossos gritos
com os dedos dos nossos
pesadelos e ciúmes
numa manhã de primavera a estender inverno
frio, gelado
como a neve serena
que se encosta à silva.

Vem, amanhã
já que todo o lodo que nos tapa
é capa morta de estendal
uma porção de porções que não têm peso
uma balança fingida que finge que pesa.
E, se amanhã vieres, vem serena como
a lágrima de uma criança como
o andar dum velho como
o meu espírito neste momento...
Vem, amanhã
e nunca!...


José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Falar-te-ão de mim, quando um dia vieres. Mas será tarde

pintura de Edouard Manet


Falar-te-ão de mim, quando um dia vieres. Mas será tarde
porque na noite, tenho essa imensa alegria de luz
que me invade em cada movimento, em cada encontro.
Já viste como se vendem os homens? Como cada palavra que dizem
é cada palavra que compram? ! Este mundo é um grande deserto
de interesses, de mãos agarradas aos ombros dos outros
a eterna facilidade de se dizer bem, quando mal é
e mal, quando algum bem lhe vem. Eternamente, um círculo fechado.


José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Chegada a hora, chegada a decisão suprema da escolha

Cupido e Psyche de, J. Louis David
.
Chegada a hora, chegada a decisão suprema da escolha
separado o fruto que te irá saciar
te irá fazer alongar a noite para lá do sono
nos suaves lençóis em que te deitas, em que geralmente adormeces
puxarás a-ti o corpo escolhido.
Corpo enfeitado com os aromas dos teus desejos
de tua escolha, da tua decisão. E é aí, ai
em que os teus gestos são milimétricos
em que o teu feitiço é saliente
em que o teu corpo recria o lugar da fortuna
que o teu mundo gira e se apaga
sua e consome, roda e inventa. Para teu gosto, consolo, favor.
Enorme e triste gáudio!...



José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Recorda-te do lugar, recorda-te onde

pintura de Franz Mark

Recorda-te do lugar, recorda-te onde
as mãos invadiram o corpo
os lábios seguraram os gestos
os corpos invadiram o lugar.
.
Recorda-te deste círculo perfeito
em que os olhos chamaram as vozes
a boca segurou o sexo
a língua penetrou o rosto.
.
Recorda-te que tudo se recorda
nesta terra plena e farta
onde tudo se quer e tudo se deixa
.
lugar onde se vivem momentos
se recebem cheiros, onde
se gastam luzes, favores, cansaços.
.
José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

terça-feira, 18 de novembro de 2008

é a hora

pintura de Wassily Kandinsky

É terrível ouvir as chamas a apagarem o silêncio
A rosa vai ficando mais branca
com o escorrer do sangue
o céu mais cinzento
com o ecoar da hora
Nada é nada, a não ser o pó fumegante das grandes espirais.

José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Eco de qualquer manhã

pintura de Paul Gauguin

Como ter o que a morte ausente
nesta terra fria, oca e fingida
se a mão treme e dá guarida
ao que o corpo não pressente?

Como ver se nada está presente
na manhã que desponta apetecida
em imagem de cidade arrefecida
que ao mostrar-se, a si-própria mente?
.
Que venha o sol. Que venha e que se mostre
que ilumine os olhos perdidos na distância
que é curta e vária...


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

sábado, 15 de novembro de 2008

Princípio VIII

pintura de Gustav Klimt

Ninguém olhou o teu rosto.
Ninguém quis saber
que essas tuas mãos tinham mais força
que todos os sonetos de Shakespeare.

Balançando no Tejo
o teu gesto
todo ele tinha forma da cidade
que crescia para mim
em cabeças várias
como legiões de bárbaros
ninhos de franco-atiradores
pelotões de fusilamento.

Acendi o cigarro
e contemplei a cidade do outro lado.

Nada me parecia mais irreal
do que as mãos das pessoas
passeando, olhando procurando
o outro lado da vida
- se é que a vida tem outro lado
e esse lado se olha! -
com o á-vontade de quem se passeia
pela face da terra
com gestos de heróis.

Ah, quanta desgraça!
Quem a assume? Quem a contempla?

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Princípio VI

Relatividade, de M. C. Escher

Foi a casualidade que nos pôs
no caminho.
Mas era bom que o futuro
nos não juntasse.


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O sabor! O sabor... Eternamente o sabor!!!!


pintura de Emília Matos e Silva

O sabor! O sabor... Eternamente o sabor!!!!

Da noite autêntica e idêntica
noite antiquíssima e estranha
da noite de todos os sons e ecos
de todas as vozes e silêncios
noite das línguas e das formas
dos gostos, dos sentires, dos desejos
noite em que nos deitámos ao lado
um do outro, reparando num e outro
sem dizermos que um e outro era noite
de todas as formas e antigos dias...

Como fizemos desta noite
a noite de todas as estrelas
com o sabor do sexo preso nos lábios
a sensação da pele perene nos dedos
o território da alma a caminho do Tempo
com a coluna de Cavaleiros
à espera que descessêmos.

Da noite autêntica e idêntica
a noite antiquíssima e Bela.


José Manuel Capêlo, inédito, 2008

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Princípio V

pintura de Joan Miró


Só os génios coçam a cabeça!
Os outros
coçam os braços e as pernas
(também as costas)
mas todos seguirão
a velocidade do tempo.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

terça-feira, 11 de novembro de 2008

O tempo de todos os tempos, esse, vem perfeito

pintura de Salvador Dali

O tempo de todos os tempos, esse, vem perfeito:
como todos os dias juntos, todas as horas segredadas
como se tivessem sido germinadas numa-só.
É esse o tempo que lembro, e mais nenhum.
Ou que teimo em lembrar nas imagens de quantos
em expressões, matérias, memórias, me ficaram captadas
numa quase contemplação que o sentimento intuiu
o momento clareou, e o bem, ou o mal
do que ficou, se deixou restar em-mim.
.
José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Quem vem habitar estes dias de páginas soltas

pintura de François Boucher
.
Quem vem habitar estes dias de páginas soltas
e linhas cruzadas? Estes sóis de não regresso
onde me encontro? Estes lugares de fuga e
eterna pressa?
.
Apenas, e só tu!
.
Que poderias partir para as loucuras da terra
fingires-te ausente dentro das estrelas
repatriada por terras de nómadas sedentarizados
fabricante de enormes blagues e sentidos vazios
mas sempre ficarias, inocentemente longe.
Que poderias fugir com os teus braços e as tuas mãos
com o riso branco que te emoldura o rosto
com as tuas pernas esplendidamente delineadas
mas não deixarias de seres-tu, eternamente presa
como se a clepsidra funcionasse ao contrário
ao contrário de tudo, sem que nada fosse igual.

Que loucuras poderíamos nós fazer?
Que segredos a segredar aos outros
que não os que segredávamos a nós mesmos?


José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

domingo, 9 de novembro de 2008

sempre uma garrafa na minha mesa!

Baco, de Michelangelo de Caravaggio

Sempre uma garrafa na minha mesa!
Sem a garrafa
a mesa não existe
porque nem a toalha ou os pratos a enfeitam.
Há a impressão de que
sem a essência na garrafa
a inteligência humana sofre
(porque pede)
e desde que pede
o homem pena sem impressão.


Sempre uma garrafa na minha mesa!
Álcool puro pela garganta abaixo
livros atirados ao ar
no ar de mosto
em que as vozes se aglutinam nas cervejas
os brados se enfeitam no borbulhar da fermentação
os gestos são lentos pelo vivo do liquido...
Ah! mas os gritos, os brados, os gestos
não serão forma pura de imaginação?
.
Sempre uma garrafa na minha mesa!


José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

sábado, 8 de novembro de 2008

A razão do meu sentir de hoje!

Auto Retrato de Vincent van Gogh


.................Eu quero ser louco.
.................Deixem-me ser louco.
Loucura não é usar boné
coçar na cabeça, roer um dedo, olhar uma grade
andar num só pé.
Loucura não é olharem-me nos olhos
fumar dum só lado
entre flores duma árvore de cemitério
uma perna que passa
uma saudade de fado.

................Eu quero ser louco.
................Deixem-me ser louco.
A loucura é uma casa em que me abrigo
uma luz que me ilumina, uma mão que me segue
e que riu porque a sigo.
Loucura é fazer versos
é mostrar-me, é dizer quem sou
- um dedo, um olhar, um boné -
dos lugares que sinto... dispersos.

................Eu quero ser louco.
................Deixem-me ser louco
........................................ao menos
....................................................Hoje!

José Manuel Capêlo, Odes Submersas, Átrio, 1995

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

E agora, Carlos?

Favela, de Candido Portinari

para o Carlos Drummond de Andrade,
no dia dos seus 83 anos.


E agora, Carlos?
Não vou de bonde
porque não sei o que é um bonde.
Talvez a terra redonda
esclareça o que é um bonde.
E agora, Carlos?
E agora?

Agora
é uma palavra a lembrar metafísica
a lembrar discurso
a lembrar carinho
a lembrar que a noite veio
e o frio esfriou
a lembrar que os sábios
não têm biblioteca
nem incoerência
nem ódio.
E agora?

E agora, Carlos?
Se a geometria não fosse
uma parede nua
acreditaria que sozinho no escuro
fugirias a galope.
Como não, Carlos?
E depois, Carlos?

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Saber o que está tão perto

Santiago o Grande, de Salvador Dali


Saber o que está tão perto
tão seguramente confessado
qual retorno ao que se escreve e se canta
porque nada pode acabar sem ter começado.

Fluído, o que se consome por entre os lábios
- que são restos de hoje e lágrimas de um amanhã
que se inventa, se cria, se muda e se retém.

Não me demovam, porque tudo é luminoso e fluente
próximo e opaco, clareira e vertente.
Imagino-me e não ouso.
Invento e não creio.
Sonho-me um menir isolado.

José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Para quê falar-te, para quê sonhar-te

fotografia artística de Richard Estes


Para quê falar-te, para quê sonhar-te
se não levo palavras nem recordo sonhos?


Tudo nesta terra tem o sabor a pó.
O gesto das flores e o leve do ar
com o azul do céu pendurado na calote
o negro do silêncio a cinco palmos da terra.
Na face dos homens, o silêncio das espécies.


Fiquei a olhar-te enquanto cruzavas
a grande porta de vidro de encontro ao universo.
Longe de tudo, apenas tu
no final da rua.


José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Quando te apetece, ou te seduz

Paisagem Romântica com Torre Arruinada, de Thomas Cole

Quando te apetece, ou te seduz
adoças os meus lábios, para refrescarem os teus
no soberbo oferecimento dos beijos
terra-nossa onde os braços se entregam, as mãos agarram
o corpo se une, os olhos se recolhem, nessa voz de silêncio
única e verdadeira, que nos é morada.
É esse, este, o lugar que se ergue da brisa que se nos sopra fresca.
E são de alegria, qual refúgio fascinado de esplendores
as palavras e as páginas.
Que o mesmo é dizer, momentos, memórias e cânticos.
É neste íntimo ébrio, pleno, perfeito
que as minhas noites se erguem e avançam para o mar em frente
para as luas empoleiradas no céu estrelado
para as aves que se abrigam nos ninhos arquisuspensos
arquipendurados no calor do silêncio.
Na rua que se abre, na janela que se espreita
na memória que se escuta
- em fascínio de imagens, lugares, datas -
recolhem-se em visões.

José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

domingo, 2 de novembro de 2008

Entraste com as madeixas louras despenteadas pelo vento

pintura de Tamara de Lempicka

Entraste com as madeixas louras despenteadas pelo vento, naquela sala de exposições que cheirava a tinta de telas e livros novos. Um murmúrio de vozes levantou-se, à altura do meu olhar, à tua passagem. Foi então que te vi, secreta ou serenamente esplêndida no curvar da saia negra apertada à cintura, suspensa das ancas soltas, à imagem de uma estátua grega. Talvez de Eurídice. Resguardara-me, então, no meu longo fascínio, qual Apolo devoluto e apaixonado, temerosíssimo deus da minha força e grandeza.


José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

sábado, 1 de novembro de 2008

Mágico Novembro

Na trilha de Berry no Grand Canyon deArizona, de Thomas Moran

Rasto de rasto que a sombra dilui
no rasto traço enfim deserto.
Mancha solar que se possui
como um livro aberto.
.
Rasto de rasto em gente.
Rasto cadente
pela terra coberto.
.
.
José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986