sábado, 22 de novembro de 2008

vem, amanhã

Leda e o Cisne, de Theodore Gericault


Como
se o alarido é a mão direita da crítica?
Contra os ecos sonantes do jacto
só podemos apor
os nossos dedos contra os ouvidos
os nossos olhos contra as nuvens
e um pouco do nosso sorriso
contra a distância.
É fácil falar-se de amor
(tão fácil falar-se de amor!)
acreditar que o encontramos no carregar do botão
nas margens opostas ao nosso silêncio
no eco em penedias de contrafortes e serras
na bacia larga dum mar em ondas
na cinza quietude dum céu pleno
ou na baixa verde duma floresta virgem...
É fácil falar-se de amor
tão fácil
como acreditar que amar é beleza
um império construído com os nossos gritos
com os dedos dos nossos
pesadelos e ciúmes
numa manhã de primavera a estender inverno
frio, gelado
como a neve serena
que se encosta à silva.

Vem, amanhã
já que todo o lodo que nos tapa
é capa morta de estendal
uma porção de porções que não têm peso
uma balança fingida que finge que pesa.
E, se amanhã vieres, vem serena como
a lágrima de uma criança como
o andar dum velho como
o meu espírito neste momento...
Vem, amanhã
e nunca!...


José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

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