segunda-feira, 24 de novembro de 2008

como se tudo fosse antigo e único

pintura de Jean Marc Nattier

arranjei um coração à porta da tua casa, quando, com a tua inocência, vieste á entrada, apareceste esplêndida e me acompanhaste à sala com o sorriso de quem leva o voo da águia ao cume da montanha e o explica às nuvens. depois, tudo foi mais simples, tão simples como o plano da mão que aperta o fundo da noite sonâmbula e idêntica nos espectros ou nos vultos que se prolongavam pela infinidade das sombras e que dialogantes, se explicavam nos gestos breves, nos ecos surdos, no rútilo dos espaços.

contigo fugi às estrelas e às escadas de outros planetas, que me chamavam e me conduziam - porque aqui é a Era do Aquário - com a estrada em frente e as catedrais de pânico, de entradas plenas e escadarias bravas, ante os olhos de serpentes a destaparem olhos de mulheres,


quando me descobriste, fui ao fundo do teu corpo e inundei de sémen o antro do teu virginal delírio, o rosto da tua angelical alegria, os desejos da totalidade das tuas formas, porque se alguma coisa houve a dizer ou a chamar, seria o vaso largo onde bebemos o nosso encontro.


a partir daí, lavamos as mãos e benzemo-las no fundo dessa noite, sonâmbula e idêntica, como se nada mais houvesse, senão o conjunto das nossas bocas, dos nossos modos ofegantes, dos nossos suores vivos, dos nossos dois corpos-dois, num conjunto único e indivisível.

por detrás soaria, equânime, a noite fácil e sublime no recorte dos dias anteriores e nos desejos seguintes, que por serem presentes eram futuros e eternos e cheios como se a intensão fosse antiga e única.

desde que o cheiro do teu corpo me inundou
apenas me resta o silêncio da tua espera.


José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

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