quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Sábado adormeceu


pintura de Francis Danby

Sábado adormeceu.
Corre a noite com a brisa forte e refrescante
a entrar-me pela janela aberta deste andar de três pisos de altura.
É a noite que me invade de segredo.
Como o de estar só
e perfeitamente consciente d(est)a minha solidão obrigatória
necessária, fantástica. Tenho mais tempo de pensar
de criar para mim todos os objectos que imagino
todos os reflexos que me possuem, e de que sou possuidor
na mais completa e perfeita alquimia dos sentidos
dos desejos, das verdades que me surgem irradiantemente distintas.
A solidão não é, nem nunca poderá ser o estado do meu abandono
ou da minha oposição ao mundo que me rodeia.
É antes, o mais completo estado das minhas faculdades
das minhas aparências, das minhas visões
das imagens que crio para mim
(e também para os outros, porque não!...) e que deixo
para quem as quiser receber voluntariamente e sem obrigações.

José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Esperei por Sábado

pintura de Carl Rottmann


Esperei por Sábado
- dia infinito de paz e descanso
de repouso e de bem comigo
para te escrever ao correr do instinto-
da vontade, do delírio, da posse
da imagem que representa o teu corpo
as tuas palavras, o sentir infinitamente o magnífico do tudo que és.
E nada poderei, porque tudo vem de-ti
minha Ilha-Verde

cor perfeita da paixão, sagrada pela distância
que os ventos seguram e me trazem num sibilo uníssono.
Perfeito. Único.

Sempre te espero
como sempre de-ti haverá o regresso em-mim.


José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Falaram-te os olhos com o fogo no corpo

pintura de Sir Edward Burne-Jones


Falaram-te os olhos com o fogo no corpo. Saíste
com a imensa claridade das lágrimas
a fecharem-te a boca, vácuo íntimo de uma clareira
que se suspendia para lá das cores de um arco-íris reflexo.
Não serás, não poderás ser a alma que te imaginas
mesmo que as formas que dás aos teus gestos
sejam restos de hoje ou iluminuras de um amanhã
mais visto que desejado. Olha-te e vê.
Repara que as nuvens não são fixas, nem os montes suaves
nem os ribeiros mansos, nem a voz dos homens
a bravura do que te traz suspensa. Os homens têm olhos
nas vísceras e cutelos nos lábios. Dão-te o que lhes pedes
mas ferir-te-ão sem que as tuas lágrimas
demovam a enorme cavalgada em teu redor.


José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

domingo, 28 de dezembro de 2008

Da razão imaginável

pintura de Michelangelo Buonarroti


Toda a realidade é a realidade que imagino
e não a irrealidade que se põe
em frente dos olhos.
Só o que sinto, é visto!

Como é que uma flor é uma realidade bela
se um rio é uma realidade bela
e o choro duma criança outra realidade bela?

Todas as mãos do mundo têm a realidade
de serem realidades belas.
Mas nem todos os olhos e ouvidos
conseguem ser realidades belas.
O céu é a mais perfeita das (ir)realidades que conheço
mas nem por isso deixa de ser belo sem realidade.

Apresente-se Deus e chamar-lhe-ei
a mais bela das realidades belas.


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

sábado, 27 de dezembro de 2008

Nestas horas, horíssimas de estar

Num café, de Gustave Caillebotte


Nestas tristíssimas horas de Setembro
entre um riso calvo e uma parede por caiar
no meio de mesas e luzes alinhadas
ao lado duma fronteira e dum olhar
descubro faces crispadas
com vontade de gritar.

Nestas longuíssimas horas de nada
entre um café aguado e água por beber
no meio de tacos velhos e mãos de ontem
ao lado do tempo e de nada ver
há ecos que se repetem
sem nada terem que ser.

Nestas estranhíssimas horas de outro dia
entre uma lágrima e um risco sem sentido
no meio do meio do mundo
ao lado dum brinco em corpo tido
aparece-me do mais profundo
um vulto sem ter ouvido.

Nestas horas, horíssimas de estar
espero, sentado, quem chegar.

José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Sonha como quem acorda


O sonho de Ossian, de Jean-Auguste Ingres

Não penses com o que te digo.
Sonha!
Mas sonha com o que tiveres nos lábios
o que sentires na garganta
o que te invadir o sangue
o que te andar nos pés
o que tiveres nas mãos.
Sonha!
Sonha com o pesadelo dos dias
as mudanças de luz
os cães vadios
a falta de cama
as esquinas soltas
os olhos dos outros.
Sonha!
Sonha com os gestos habituais
com os rituais
com os punhais
com os demais
com tudo o que quiseres
até com os pardais
que são como eu, como tu
espera
imenso vazio
forças do tempo
vendavais
rosto de um cigarro.
Sonha mas inventa
diz que todos os segredos são sonhos
que todos os sonhos são actos
que todos os actos são ruas
que todas as ruas são gestos
que todos os gestos são olhares
que todos os olhares reproduzem
tudo o que a voz grita
é grito teu, teu, teu, teu!
Sonha!
Sonha criança da minha infância
tão igual à distância
que percorri nos meus passos.
Tão igual à criança que procurei
no meu gesto.
Tão igual à criança que nasceu
em mim.
Sonha!
Sonha a igualdade que não existe
a árvore isolada, só e triste
a imagem que é real e que persiste
onde só a nuvem paira
ante o eco do céu aberto.
Sonha!
Sonha como a dizer que o eco é vago
e a tarde quente
e a manhã azul.
Que tudo o que imaginas para lá
é o lado contrário da terra
e o oposto do desassossego.
O teu mundo é a tua mão aberta
o teu lado de riso
a tua boca de espera
o teu rosto de ânsia
o teu instinto decente.
Sonha!
Sonha como quem mais ordena
como quem transporta na mala a tira-colo
todas as lembranças do mundo
as recordações do presente
dado que o passado é passado
(tão passado como ido)
e tu vives
de óculos escuros a taparem-te os olhos
de mãos brancas a cobrirem-te os ossos
de olhos serenos a enunciarem-te imagens.
Sonha!
Sonha com tudo o que quiseres
o que te apetecer
o que a bebida te trouxer
e manda para a vida
a putice do destino
o inferno das horas
o pesadelo da obrigação.
O teu anjo é o sorriso.
Brinca com ele
emoldura-o
põe-no na parede
ou entretém-no em ginástica rítmica.
O melhor do mundo
- para além das crianças-
é o teu sorriso
os lábios cheios de vida
cheios de ti
cheios dos outros.
Sonha!
Sonha!
Sonha verdadeiramente
sonha com todas as tuas decências e frustrações
com todos os delírios e sonos
com casas suspensas e mágicos novembros.
O teu mês é Janeiro!
Acorda nele o teu rosto
e a neve terá outra luz
outra força
outra natureza.
Sonha!
Sonha como quem acorda
já que a terra passa e o sonho fica.


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Foi assim que apareceste no grande vale dos meus delírios e sonhos

The Sleeper, de Tamara Lempicka
.
Foi assim que apareceste no grande vale dos meus delírios e sonhos. Forma de mulher, forma de gentio, forma de brevíssima sede nos meus lábios vermelhos ressequidos. Dessedentei-me ante o teu sorriso branco e pleno, fortuito acaso que me aparecera sem esperar. No olhar-te, lembrei-me dos dias virginais de Setembro em que pelas mãos passaram os fáceis versos que tiveram, nas palavras dos outros, o fruto do tempo a compor-se com o Outono solar das folhas, que principiavam a silenciosa descida das árvores. Vieras com elas. Serena e breve, plena e enfeitada. Com as cores das tuas vestes. E o teu sorriso. Sempre o teu sorriso branco, na boca vermelha de espanto. Depois, apareciam os que te viam. Segredavam-se-te em vozes de plenos animais de instinto, de posse ou de delírio. Só que, me compreendeste no eco do espaço, na única palavra que te segredou, que o lugar não era ali, nem em lugar algum que a sala proporcionava. E tínhamos a noite. Possivelmente, as estrelas que nos iriam receber. Ou mesmo, que viessem as nuvens.

José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

poema para um amigo

Mãos, de August Rodin


Se a manhã crescesse em forma de monte
se a manhã crescesse, meu amigo
talvez que eu conseguisse pintar um quadro
com a forma da tua alegria.

Emprestaste-me as tuas mãos
e com elas fui passear para o meio da floresta
contígua ao mar
próximo das nuvens que me baptizavam o rosto.

Serenamente, sem pressas
fui afastando as pedras que me cruzavam o caminho
como representativas figuras
que num palco nada representassem.

Como o fumo na minha boca
fui caminhando atrás dos cigarros
atrás desta pequena loucura
que em nada me aflige, em nada me altera.

Mas se por outro lado, a manhã crescesse em forma de névoa
então, meu amigo, estes olhos
baixariam à terra que me produziu
ao ventre que me gerou
à luz que se abriu solta
à revolta do meu choro
ao eternizar dos meus primeiros passos.
Talvez que eu não conseguisse pintar um quadro
com a forma da tua alegria.

José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro 1982

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Se viesses, virias

Retrato de uma mulher apaixonada, de Salvador Dali


Se viesses, virias
tão igual como a primeira vez
que escutei em movimento de silêncio
nessa noite de ecos e vozes fáceis.

Virias igual
às lágrimas que deixaste
nas mãos dos que não te ouviam.
E eras tu, por seres tu.

Vagaria o vento
por fora das janelas e varandins
no seu movimento rápido

de esperas e segredos.
Mas eras tu, que ninguém via
que estava ali, seguramente.


José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

roosevelt hotel

Quarto em Nova York, de Edward Hopper

Por entre as luzes de luar
os olhos da água
acordando-me na boca.
Sobejam-me as mãos
para me adormecerem os olhos
(que apoiados na madeira)
me conservam os lábios.
Enfim
a grande tragicomédia.

José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

domingo, 21 de dezembro de 2008

é a cidade que te persegue

Adão e Eva de Peter Paul Rubens

tudo cresce na cidade cheia. e os teus seios leves, suspensos, magníficos, na minha mão pesada com o suor da cidade, com o cheiro das ruas pequenas e escondidas, na impressão dos olhos a alcançarem o rio, que não é mais que toda a imagem parada de um ritual antigo, magnífico, suspenso, leve, como os teus seios a lembrarem pequeníssimas dunas duma qualquer praia vacilante e marítima. e vens tu, serena e decidida, erótica - diria, sensual! - percorrer a distância que te me separa no teu caminhar ágil, fácil, esplêndido, no negro do teu vestido cintado.
é a cidade que te persegue nos olhares que te vêm, como se nada mais houvesse senão a tua figura na mão de todos, à mão de ninguém.

José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

sábado, 20 de dezembro de 2008

Princípio XIII

Narciso de Michelangelo Caravaggio


Há um quadro no meu rosto.

Bebo o que me vem das cores. O resto, são formas que mal distingo, aspectos que mal vejo, qualidades que não sei quais. E o teu rosto, o teu rosto e o silêncio do teu rosto...

Ouço indiferente a sua voz.
O cigarro acende-se
a luz fere
a chama brilha
o fogo ateia-se.
Basta!

Como quem acorda os nibelungos após a morte. Qualquer sono. O infinito... Qualquer infinito que surja entre a voz e o princípio de um qualquer precipício. Basta! Porque a casa que habito não é minha, nem a face que distingo vem com a cidade aberta, nem o relógio, com a sua pancada habitual, se escuta. Só a noite enche o rosto e a alegria breve. Qualquer alegria breve, como o som que se expande da alma.

Há um quadro na parede.
Há um quadro no meu rosto, verás!

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Distância com pássaros

Crianças da montanha, de Thomas Moran


Feliz fiquei a olhar a grande distância, com pássaros.
Para lá havia, de certeza, uma montanha com rituais próprios: maneiras verdes, rastos brancos, expressões azuis e, uma ou outra cascata a bailar na penedia.




José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Princípio XII


pintura de Paul Cezanne

Não mais para além das palavras.

Tudo o que for a mais engana
e tenho um cigarro preso aos dedos
como a tua boca presa ao eco.

Posso falar? Posso dizer o que me vive?
Posso dizer que a noite é escura
sendo ela clara?

Deixa-me dizer o que penso e o que sinto
e o que vivo e o que me apaixona e o que amo!

Deixa que me seja igual
já que não posso
seres tu.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Princípio XI

Venus ou o Meio Dia, de Noel Halle


Acordei com a cabeça cansada
os ombros vergados
os olhos inchados.

Roxana aparecia indistinguível

O cabelo negro, a mão de pintora, o lábio tristíssimo, o seio pequeno.
.
Normalmente
os anjos amam-se nas camas de nuvens.
Eu
amei-a na cama daquele café de muita gente, sob o olhar de luzes fechadas ao encoberto da porta. Nada nos distinguia. Enganávamos, com mãos de distância, princípio e fim de qualquer gesto. O luar e a lua em comunhante pesadelo.

Roxana aparecia indistinguível.
Eu
feliz porque me pareci igual.


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

os olhos dos pássaros

detalhe de pintura de Pablo Picasso

se a noite te trouxesse esplendidamente delineada, que diriam a sombra e o rasto do casario na alegre galhofa de todas as horas após o sol? sei lá!... poderiam dizer, eventualmente, que a lua era mais pequena. que os olhos dos pássaros tinham outra cor. que o movimento das ondas era indistinguível no cais de todos os barcos. que os homens eram silhuetas breves a confundirem-se com as árvores. ou que o sono das crianças teria a forma de paredes de medos futuros. sei lá!...

mas se alguém te trouxesse, haveria alguém que estaria à tua espera a uma esquina. não te esqueças. há sempre alguém à nossa espera sem que o saibamos!

José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Há uma ilha no oceano

pintura de J. M. William Turner

para o José Lúcio


Há uma ilha no oceano. Vagamente uma ilha. Plenamente o mar. Lembro-me que existem árvores em redor do rochedo. Como tudo é verde, demasiado verde, esqueço-me e adormeço.


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

sábado, 13 de dezembro de 2008

Princípio X


Igreja de Auvers, de Vincent Van Gogh

Há sinos que tocam em noites inteiras
com os pêndulos a descerem pelas escadas...
Só os nossos risos percorrem os silêncios
em requebros de valquírias
a suspenderem jardins no passo principiante.

Espera como quem vive de demora.
Guarda-te no teu rústico seio
enquanto durar o sol na tua carne...


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Hora primeira

pintura de Henri de Toulouse- Lautrec


O meu destino não é comer tremoços, nem cofiar a barba que me cresce, encobrindo o rosto belo, a boca suavemente cheia de desejos que não passam de sonhos - quais ideias de fantásticos hábitos - apanhados nas esquinas de enganadoras imagens; ou, tão-pouco, arregaçar as mangas (se for caso disso!) preparar o segundo e imortalizar o quadro que se desprende duma parede oposta ao lugar do muro. A minha existência tem outros sinais, outros signos, outras luas, que nem o vento as comporta, nem o mundo as destrinça.


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Para um ano!...

pintura de Kandinsky

O que é que posso escrever para abrir um ano?
Que o sol dure?
Que as aves continuem a habitar o céu?
Que viva muitos dias?
Que me desate a rir?
Que peça – a Quem? – que me nasça um rapaz?
Que me faça rico?
(Como, se sei que nunca o serei?!...)
Que mantenha o emprego?
Que tenha um novo carro?
Que este inverno seco traga chuva?
Que escreva muito?

Há tantas coisas a pedir, há tantas coisas que
gostaria de ter, que prefiro não pedir nada e deixar
que o tempo passe.
Esse sim, esse logo me trará o que me está guardado.

Nunca fui de ambições.
Vivo do trabalho e de sonhos.
Muitos. Mil.
Cada dia com múltiplos, diferentes
sempre diferentes.

poema de José Manuel Capêlo, corpo-terra, 16.set.1981

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

aperto de mão

Desenho de Artur Bual

A Artur Bual



Sim
é claro.
Um aperto de mão
ainda
diz muita coisa!
.
José Manuel Capelo, corpo-terra, Trelivro, 1982

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Oh! minha Ilha-Verde, oh! amada

Diana, de Claude Deruet


Oh! minha Ilha-Verde, oh! amada
oh! minha doce paixão do Tempo

como sei ver que a vida, a minha
só tem interesse quando dos teus olhos vem a luz
quando as minhas palavras se escrevem
os meus gestos se conduzem
as forças geram os grandes momentos.

Em que as situações se tornam únicas.


José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

sábado, 6 de dezembro de 2008

Nada é estável e eterno no mundo

Diana, escultura de Jean Goujon


Nada é estável e eterno no mundo. Tudo se modifica: como o amor e a raiva, a posse e o isolamento, o acreditar e o engano!

Cantei em ti, a visão íntima da terra
a noção inteira do corpo
a razão destruída do espírito.
Cantei-te, ó deusa inteira e frágil
- lugar das alturas e dos delírios
embrião de uma ideia
que me fez nascer num dia
em que a noite cantou a terra -
porque nas tuas mãos frágeis
seguraste o meu corpo e delírio
enfrentando os mistérios do silêncio
nas vozes incapazes que se alimentam de esquinas.
.
Cantei-te, ó deusa inteira e frágil
porque se o não fizesse
nunca o teu nome seria destino e tempo.
Amanhã é nunca. Porque é sempre.

E nunca saberemos se nos encontramos e se tudo foi hoje. Ou se foi verdade. Ou se nada passou de uma invenção.


José Manuel Capêlo, Odes Submersas, Átrio, 1995

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

resto

Falso Espelho, de René Magritte
.

Quando eu morrer não falem dos meus mistérios.
Pensem nas imagens debruçadas sobre a minha vida.


José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

o orquestrante tocou...

pintura de Pablo Picasso
.
Um concerto de violino!
Deixei o espaço e
entrei
numa qualquer órbita
sem
pés
o orquestrante tocou...
Meu Deus, meu que sinfonia.
Para que vale comer chocolates
ou beber
aguardente
se não há movimento?
Deixei
que me
passasse
o ar.
Afunilado
no meio duma grande bebedeira
puz a caneta a
escrever...!
E
que foi que
ela disse?
Algumas palavras sem sentido
crianças a dormir
o grande vácuo.

José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Da louca paixão da posse

pintura de Antoine Watteau

Devias lembrar-me de lembranças tuas
para que o silêncio as não esquecesse.
Devias lembrar-te que pelas minhas costas nuas
descia-te a língua antes que o sono nos envolvesse.

Devias, oh! isso devias, procurar nas ruas
uma qualquer silhueta que se te me revesse.
Devias, sempre o deverias, procurar menos luas
no espaço infinito que nos escondesse.
.
E porque não lembrares-me, oh! isso devias
impedir que a memória se tornasse fácil
ou que a margem da alegria fosse fraca ou gasta.

Os segredos guardei-os, como tu os calarias
duma maneira pessoal, simples e grácil
porque mais do que o futuro, o que vem, basta!

José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

A palavra que levantei

Carmela Bertagna, de John Singer Sargent


Calei o desânimo do teu sorriso
na palavra que levantei.

Calei
porque nunca soube dizer em gestos
o que as palavras mentem
ou não sabem edificar.

Calei
porque longe está o dia
em que nos saberemos compreender.


José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

domingo, 30 de novembro de 2008

Quem correu comigo ao longo do rio

pintura de Thomas Gainsborough


Quem correu comigo ao longo do rio
e se transformou em mar?

Como o longo tardar das horas
torturam-se as ideias tornadas inutilidades:
como fábricas de ilusões e coisas mais.
Caminhos de impossíveis se avizinham e mágoas crescem
- como daninhas ervas, repentinas e frescas
no seu esplendor de criaturas renovadas.
Cegos estamos, ou continuamos a querer estar
porque as legiões de humanos não nos abandonam
e teimam em cercar-nos irremediavelmente.


José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

sábado, 29 de novembro de 2008

Era de noite!

pintura de Vincent Van Gogh



Era de noite!
Como sempre, foi de noite.
Essa luz, única, eternamente minha e dos deuses
que nos criaram em seu louvor e imagem
porque de-nós necessitam. Depois...
.
Vieram as luzes e os cânticos!
.
José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Falar-te-ão de mim, mas não os homens que hoje me erguem

pintura de Gustave Moreau


Falar-te-ão de mim, mas não os homens que hoje me erguem
nesse falso altar de amizade sem sentido, despropositada
de algum interesse escondido. Já hoje não será o dia
em que os homens cumprem, porque hoje é nascer
para um amanhã que me elucida e não desmente.
Lembra-te que as palavras são os olhos de sempre
porque só elas são os ventos da nossa grandeza
desta nossa miséria desencantada e gasta.
Lembra-te que é com suor que imaginamos sonhos
e desejos e fés e as camas longas do nosso delírio
a suspenderem-se da reunião da espera inaproveitada.
Lembra-te que, sendo a Hora, não é o tempo!



José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

os teus olhos

Fada, de Sophie Gengembre Anderson


Os teus olhos são grandes jardins
cobertos de flores a taparem sombras...



José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

depois de um jantar

Natureza Morta de, Willem Claesz Heda

a RAUL DE CARVALHO


Foi farta a noite ...
Chegámos a tua casa. O frio batia
de encontro às persianas fechadas.
O quarto? ... Sempre o mesmo.
Era uma das tuas noites más ...
Despi-te. Cobri-te.
Deixei-te meio adormecido.
Não precisavas de mais nada
a não ser
os necessários comprimidos
que te aguentavam o coração
ou, todos os amigos
de que precisavas e não vinham
ou, o grande amor que há dentro
da tua alma refugiada no pano de pó.
Até amanhã, Raul
ou, até nunca! ...


José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

terça-feira, 25 de novembro de 2008

a comunicação da tarde

pintura de Wassily Kandinsky


é alto e louro. um gigante de grandes óculos
a cobrirem-lhe o nariz correcto e longo. gagueja pela
fluidez de ideias múltiplas, pela facilidade de poder
dizer que o tempo é um grande poder de identidade. varia
a tragédia e alonga pela mesa alta os seus longos
braços longos. busca a voz e respira-a. fala para-si
como se falasse para os outros. bebe, a espaços, a água
do copo que alguém, caridosamente, lhe pôs à frente
enquanto fala. como que por intenção, os seus silêncios
devastam o silêncio da assistência. só então repara
em-si. e deixa de gaguejar. James Houlihan sentara-se.


José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

como se tudo fosse antigo e único

pintura de Jean Marc Nattier

arranjei um coração à porta da tua casa, quando, com a tua inocência, vieste á entrada, apareceste esplêndida e me acompanhaste à sala com o sorriso de quem leva o voo da águia ao cume da montanha e o explica às nuvens. depois, tudo foi mais simples, tão simples como o plano da mão que aperta o fundo da noite sonâmbula e idêntica nos espectros ou nos vultos que se prolongavam pela infinidade das sombras e que dialogantes, se explicavam nos gestos breves, nos ecos surdos, no rútilo dos espaços.

contigo fugi às estrelas e às escadas de outros planetas, que me chamavam e me conduziam - porque aqui é a Era do Aquário - com a estrada em frente e as catedrais de pânico, de entradas plenas e escadarias bravas, ante os olhos de serpentes a destaparem olhos de mulheres,


quando me descobriste, fui ao fundo do teu corpo e inundei de sémen o antro do teu virginal delírio, o rosto da tua angelical alegria, os desejos da totalidade das tuas formas, porque se alguma coisa houve a dizer ou a chamar, seria o vaso largo onde bebemos o nosso encontro.


a partir daí, lavamos as mãos e benzemo-las no fundo dessa noite, sonâmbula e idêntica, como se nada mais houvesse, senão o conjunto das nossas bocas, dos nossos modos ofegantes, dos nossos suores vivos, dos nossos dois corpos-dois, num conjunto único e indivisível.

por detrás soaria, equânime, a noite fácil e sublime no recorte dos dias anteriores e nos desejos seguintes, que por serem presentes eram futuros e eternos e cheios como se a intensão fosse antiga e única.

desde que o cheiro do teu corpo me inundou
apenas me resta o silêncio da tua espera.


José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

domingo, 23 de novembro de 2008

A alma é um grande nevoeiro na terra de ninguém


Blue Rigi, de William Turner


A alma é um grande nevoeiro na terra de ninguém.
Esquecê-la, é inventar a luz por detrás duma grande parede
invisível e imóvel. A alma!...
Segredo guardado pelas sete chaves do instinto
pelos seios de uma grande duna
pelas forças de um gesto encoberto e derradeiro.


José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

sábado, 22 de novembro de 2008

vem, amanhã

Leda e o Cisne, de Theodore Gericault


Como
se o alarido é a mão direita da crítica?
Contra os ecos sonantes do jacto
só podemos apor
os nossos dedos contra os ouvidos
os nossos olhos contra as nuvens
e um pouco do nosso sorriso
contra a distância.
É fácil falar-se de amor
(tão fácil falar-se de amor!)
acreditar que o encontramos no carregar do botão
nas margens opostas ao nosso silêncio
no eco em penedias de contrafortes e serras
na bacia larga dum mar em ondas
na cinza quietude dum céu pleno
ou na baixa verde duma floresta virgem...
É fácil falar-se de amor
tão fácil
como acreditar que amar é beleza
um império construído com os nossos gritos
com os dedos dos nossos
pesadelos e ciúmes
numa manhã de primavera a estender inverno
frio, gelado
como a neve serena
que se encosta à silva.

Vem, amanhã
já que todo o lodo que nos tapa
é capa morta de estendal
uma porção de porções que não têm peso
uma balança fingida que finge que pesa.
E, se amanhã vieres, vem serena como
a lágrima de uma criança como
o andar dum velho como
o meu espírito neste momento...
Vem, amanhã
e nunca!...


José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Falar-te-ão de mim, quando um dia vieres. Mas será tarde

pintura de Edouard Manet


Falar-te-ão de mim, quando um dia vieres. Mas será tarde
porque na noite, tenho essa imensa alegria de luz
que me invade em cada movimento, em cada encontro.
Já viste como se vendem os homens? Como cada palavra que dizem
é cada palavra que compram? ! Este mundo é um grande deserto
de interesses, de mãos agarradas aos ombros dos outros
a eterna facilidade de se dizer bem, quando mal é
e mal, quando algum bem lhe vem. Eternamente, um círculo fechado.


José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Chegada a hora, chegada a decisão suprema da escolha

Cupido e Psyche de, J. Louis David
.
Chegada a hora, chegada a decisão suprema da escolha
separado o fruto que te irá saciar
te irá fazer alongar a noite para lá do sono
nos suaves lençóis em que te deitas, em que geralmente adormeces
puxarás a-ti o corpo escolhido.
Corpo enfeitado com os aromas dos teus desejos
de tua escolha, da tua decisão. E é aí, ai
em que os teus gestos são milimétricos
em que o teu feitiço é saliente
em que o teu corpo recria o lugar da fortuna
que o teu mundo gira e se apaga
sua e consome, roda e inventa. Para teu gosto, consolo, favor.
Enorme e triste gáudio!...



José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Recorda-te do lugar, recorda-te onde

pintura de Franz Mark

Recorda-te do lugar, recorda-te onde
as mãos invadiram o corpo
os lábios seguraram os gestos
os corpos invadiram o lugar.
.
Recorda-te deste círculo perfeito
em que os olhos chamaram as vozes
a boca segurou o sexo
a língua penetrou o rosto.
.
Recorda-te que tudo se recorda
nesta terra plena e farta
onde tudo se quer e tudo se deixa
.
lugar onde se vivem momentos
se recebem cheiros, onde
se gastam luzes, favores, cansaços.
.
José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

terça-feira, 18 de novembro de 2008

é a hora

pintura de Wassily Kandinsky

É terrível ouvir as chamas a apagarem o silêncio
A rosa vai ficando mais branca
com o escorrer do sangue
o céu mais cinzento
com o ecoar da hora
Nada é nada, a não ser o pó fumegante das grandes espirais.

José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Eco de qualquer manhã

pintura de Paul Gauguin

Como ter o que a morte ausente
nesta terra fria, oca e fingida
se a mão treme e dá guarida
ao que o corpo não pressente?

Como ver se nada está presente
na manhã que desponta apetecida
em imagem de cidade arrefecida
que ao mostrar-se, a si-própria mente?
.
Que venha o sol. Que venha e que se mostre
que ilumine os olhos perdidos na distância
que é curta e vária...


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

sábado, 15 de novembro de 2008

Princípio VIII

pintura de Gustav Klimt

Ninguém olhou o teu rosto.
Ninguém quis saber
que essas tuas mãos tinham mais força
que todos os sonetos de Shakespeare.

Balançando no Tejo
o teu gesto
todo ele tinha forma da cidade
que crescia para mim
em cabeças várias
como legiões de bárbaros
ninhos de franco-atiradores
pelotões de fusilamento.

Acendi o cigarro
e contemplei a cidade do outro lado.

Nada me parecia mais irreal
do que as mãos das pessoas
passeando, olhando procurando
o outro lado da vida
- se é que a vida tem outro lado
e esse lado se olha! -
com o á-vontade de quem se passeia
pela face da terra
com gestos de heróis.

Ah, quanta desgraça!
Quem a assume? Quem a contempla?

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Princípio VI

Relatividade, de M. C. Escher

Foi a casualidade que nos pôs
no caminho.
Mas era bom que o futuro
nos não juntasse.


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O sabor! O sabor... Eternamente o sabor!!!!


pintura de Emília Matos e Silva

O sabor! O sabor... Eternamente o sabor!!!!

Da noite autêntica e idêntica
noite antiquíssima e estranha
da noite de todos os sons e ecos
de todas as vozes e silêncios
noite das línguas e das formas
dos gostos, dos sentires, dos desejos
noite em que nos deitámos ao lado
um do outro, reparando num e outro
sem dizermos que um e outro era noite
de todas as formas e antigos dias...

Como fizemos desta noite
a noite de todas as estrelas
com o sabor do sexo preso nos lábios
a sensação da pele perene nos dedos
o território da alma a caminho do Tempo
com a coluna de Cavaleiros
à espera que descessêmos.

Da noite autêntica e idêntica
a noite antiquíssima e Bela.


José Manuel Capêlo, inédito, 2008

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Princípio V

pintura de Joan Miró


Só os génios coçam a cabeça!
Os outros
coçam os braços e as pernas
(também as costas)
mas todos seguirão
a velocidade do tempo.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

terça-feira, 11 de novembro de 2008

O tempo de todos os tempos, esse, vem perfeito

pintura de Salvador Dali

O tempo de todos os tempos, esse, vem perfeito:
como todos os dias juntos, todas as horas segredadas
como se tivessem sido germinadas numa-só.
É esse o tempo que lembro, e mais nenhum.
Ou que teimo em lembrar nas imagens de quantos
em expressões, matérias, memórias, me ficaram captadas
numa quase contemplação que o sentimento intuiu
o momento clareou, e o bem, ou o mal
do que ficou, se deixou restar em-mim.
.
José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Quem vem habitar estes dias de páginas soltas

pintura de François Boucher
.
Quem vem habitar estes dias de páginas soltas
e linhas cruzadas? Estes sóis de não regresso
onde me encontro? Estes lugares de fuga e
eterna pressa?
.
Apenas, e só tu!
.
Que poderias partir para as loucuras da terra
fingires-te ausente dentro das estrelas
repatriada por terras de nómadas sedentarizados
fabricante de enormes blagues e sentidos vazios
mas sempre ficarias, inocentemente longe.
Que poderias fugir com os teus braços e as tuas mãos
com o riso branco que te emoldura o rosto
com as tuas pernas esplendidamente delineadas
mas não deixarias de seres-tu, eternamente presa
como se a clepsidra funcionasse ao contrário
ao contrário de tudo, sem que nada fosse igual.

Que loucuras poderíamos nós fazer?
Que segredos a segredar aos outros
que não os que segredávamos a nós mesmos?


José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

domingo, 9 de novembro de 2008

sempre uma garrafa na minha mesa!

Baco, de Michelangelo de Caravaggio

Sempre uma garrafa na minha mesa!
Sem a garrafa
a mesa não existe
porque nem a toalha ou os pratos a enfeitam.
Há a impressão de que
sem a essência na garrafa
a inteligência humana sofre
(porque pede)
e desde que pede
o homem pena sem impressão.


Sempre uma garrafa na minha mesa!
Álcool puro pela garganta abaixo
livros atirados ao ar
no ar de mosto
em que as vozes se aglutinam nas cervejas
os brados se enfeitam no borbulhar da fermentação
os gestos são lentos pelo vivo do liquido...
Ah! mas os gritos, os brados, os gestos
não serão forma pura de imaginação?
.
Sempre uma garrafa na minha mesa!


José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

sábado, 8 de novembro de 2008

A razão do meu sentir de hoje!

Auto Retrato de Vincent van Gogh


.................Eu quero ser louco.
.................Deixem-me ser louco.
Loucura não é usar boné
coçar na cabeça, roer um dedo, olhar uma grade
andar num só pé.
Loucura não é olharem-me nos olhos
fumar dum só lado
entre flores duma árvore de cemitério
uma perna que passa
uma saudade de fado.

................Eu quero ser louco.
................Deixem-me ser louco.
A loucura é uma casa em que me abrigo
uma luz que me ilumina, uma mão que me segue
e que riu porque a sigo.
Loucura é fazer versos
é mostrar-me, é dizer quem sou
- um dedo, um olhar, um boné -
dos lugares que sinto... dispersos.

................Eu quero ser louco.
................Deixem-me ser louco
........................................ao menos
....................................................Hoje!

José Manuel Capêlo, Odes Submersas, Átrio, 1995

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

E agora, Carlos?

Favela, de Candido Portinari

para o Carlos Drummond de Andrade,
no dia dos seus 83 anos.


E agora, Carlos?
Não vou de bonde
porque não sei o que é um bonde.
Talvez a terra redonda
esclareça o que é um bonde.
E agora, Carlos?
E agora?

Agora
é uma palavra a lembrar metafísica
a lembrar discurso
a lembrar carinho
a lembrar que a noite veio
e o frio esfriou
a lembrar que os sábios
não têm biblioteca
nem incoerência
nem ódio.
E agora?

E agora, Carlos?
Se a geometria não fosse
uma parede nua
acreditaria que sozinho no escuro
fugirias a galope.
Como não, Carlos?
E depois, Carlos?

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986