domingo, 26 de julho de 2009

Quem nos substitui?

pormenor do Nascimento de Vénus, de Sandro Botticelli

As outras noites, dispenso-as.

Mas, vem esta noite viver comigo
vamos desfraldar nas estrelas
as nossas mãos abertas
os nossos beijos secos
os nossos pés ressequidos
por caminhadas sem lei,
que tomamos, porque necessitamos.

Quem nos pode substituir?

Já não procuramos bandeiras
nem cargas de cavalaria
nem citaras à bandoleira
nem ondas para construir nuvens
nem ossos para edificar museus.
Temos nuvens num sol encoberto
- sempre o mau tempo -
tempo no mar, tempo no ar, tempo no campo
onde os chacais correm assustando as galinhas
os cães que procuram dormir acordados
os homens que descansam de barriga vazia...

Mas, vem esta noite viver comigo
que pode ser a última
que pode ser nunca
que também pode ser o princípio do nosso encontro
numa guarita vazia, sem cheiro
onde se batem fantasmas
de baionetas caladas fumegando ácidos.

Oh ! vem, vem meus doces olhos
de jardins-de infâncias-de mãos-hábeis
vem gritar a música que se rodopia cá dentro
que nos é comum e única
que adoramos e beijamos
porque ainda a pudemos ouvir.
E, quando acabarmos a noite
sonharemos então que nos tivemos
de mãos dadas, beijos feitos, pés únicos.

Boa noite meu amor. Vamos sonhar...

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

terça-feira, 21 de julho de 2009

Os outros dias

Paisagem com pássaros amarelos, de Paul Klee


Felizes vão os dias de sossego
na vida calma de horas certas...
Nada em mim é visão de cego
antes, claridades de portas abertas.

Corriam livres esses dias marcados;
eram plenas, essas horas sagradas
buscavam os dedos os lugares fechados
sentiam as mãos as formas onduladas.

Como eram bons esses dias de ontem
que não esquecem no tempo de hoje.
Revivam-se, porque todos se sentem
porque nada se perde, nada foge.

Adeus meus dias passados
meus bons tempos de fortuna;
escrevo agora meus breves fados
p'ros lançar, depois, na laguna!

José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha, 1978

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Traz-me...

Criação do Sol, Lua e Planetas, Miguel Angelo


Traz-me o mundo
que eu te darei a terra
não o acaso, o ser imundo
que nele anda, prolifera.

Traz-me flores
pétalas mal acesas
lírios debruados d'amores
e não ondas de incertezas.

Traz-me o tudo
o mar sem fim que aqui é
dá-me o teu corpo nudo
para riscar céus e maré.

Traz-me o meu egoísmo
e o reparo de quando me olhas
porque em mim, vês abismo
e não a flor que desfolhas.

José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha, 1978

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Além do nada só tu!


Danae, de Henri Fantin-Latour

No meio daquele corpo tinha o meu
rasgando-o em beijos de desfolhada;
a hora, não era tempo, não era nada
nem a noite se estendia pelo céu,
nem o sol despontava com a madrugada.

Os lírios lá estavam nos canteiros
bailando na nova luz qu'aparecia;
no meu sono despregado do dia
não via a caminhada dos obreiros
nem o rosto sereno que ao meu lado, dormia.

Oh! quanta luz, quanto desejo
de te ter, mulher!
O teu olhar é um beijo
que o meu corpo só quer.

José Manuel Capelo, Miragem, Editora Montanha, 1978

terça-feira, 7 de julho de 2009

Ser

pintura de Vilhelm Hammershoi


A razão de ser como sou
deve-se ao facto
de não ser como deveria ser!


José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

sábado, 4 de julho de 2009

Rosas nos peitos dos homens

Ansiedade, de Edvard Munch


Ela tinha no rosto as cavas fundas das rosas
e no peito o segredo imenso dos deuses

Passeava-se no espaço perdido de várias dimensões
acompanhando o grito com as mãos..... varrendo
o silêncio pesado de véu de viúva

Da sua boca destaparam-se filhos..... vários
estranhamente doentes estranhamente em silêncio
estranhamente estranhos de si-mesmos
véus encobertos que nunca se destapam
nem descobrem nem fogem nem lutam
a lembrarem as cavas fundas rosas
no peito imenso dos deuses..... estranhamente em silêncio

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983