quinta-feira, 31 de julho de 2008

como de costume

pintura de Gustave Caillebotte


Como de costume
a hora alongava-se na pequenez da hora
na fealdade que representava o tempo passado
- esse-mesmo que, quando não nos agrada, devemos esquecer.
Ou pelo menos, que não nos atormente
nos não fira noutros tempos do tempo - todo ele esquecido já.
Restos de passado, sem futuro.



José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Sempre que a terra continua

pintura de Paolo Uccello

Sempre que a terra continua
os cavalos passam...

E os cavalos que passam
são lugares onde o sorriso se suspende
onde, de repente, o lugar da terra se quebra
ante a miséria que se afasta e grita
por entre olhos envoltos em melancolia.

Qualquer lugar da terra
é o estreito corredor por onde os cavalos passam!...
.
José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

terça-feira, 29 de julho de 2008

O grito e o silêncio

pintura de Sir Edward Burne-Jones
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Tudo parece um sonho...
.
E o que é um sonho
senão a função da primavera ante um grito na montenha?...
Senão o fragor duma cascata ante o silêncio da selva
ou o passar duma nuvem ante o céu que nos anima?
.
Com ele, construímos miríades acima de nós-mesmos
fugimos ante o temor que nos produz
lembramos imagens que julgávamos impossíveis
arrepiávamos caminhos que pensávamos disponíveis.
Com ele, quantas vezes fugimos de nós
e dos outros, sem remédio
sem olharmos para trás uma única vez que seja?
.
Todos o temos. Todos o tivemos
e ai daquele que não nasça com sonhos,
pois (esse) ficará com o espectro
do que caminha sem sentido.
.
Mas hoje, sonho o sonhar-me!
O sonhar-te através do teu corpo
da tua presença, da tua ausência
e do que és, sem o seres.
.
Hoje, sonho-me sem me sonhar
eternamente ... sonhando-te.
.
José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Da louca paixão do beijo

escultura "Eros e Psiquê" de António Canova

Da cidade, vinha o vento e a chuva! A humidade
descia imensa e frágil na sua alegoria de vida.
Corriam muros paralelos aos nossos passos iguais
como se corressem serpentes de encontro ao lugar de encontro.

Na grande carta dos medos, as linhas eram descidas
nos muros paralelos, mas modificando as cores nos horizontes
distantes. Por isso, corriam os braços de encontro ao corpo
pedinte, ante a verdadeira lonjura dos olhos, em serena quietude

dos lábios. Daí cresceu o fogo. As narinas secaram
pela formidável ascensão do ar. Os cabelos brilharam
pela branda inércia do vento. As mãos cicatrizaram-se

na espessura suave do rosto. Da boca aberta de lábios, apenas
o murmúrio deslizava numa ténue cascata de encanto.
Atrás do segundo aceso, a saliva secava a firme função do beijo.

José Manuel Capêlo, A noite das Lendas, Aríon, 2000

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Acenaste com a cabeça ...

escultura de Kurt Gebauer
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Acenaste com a cabeça e levaste-me para a floresta próxima, onde as árvores ocultam os gestos e as faces da cidade se resguardam para lá das luzes que se fecham. Ficamos entre o início e o fim de cada dia. Mergulhava a manhã dentro do nosso espaço e afastamo-nos quando nada mais havia a fazer ou tão pouco se insinuava para dizer. Tivemos o cansaço e o delírio por começo de dia. Acendiam-se luzes fantásticas na natureza. Dentro de ti, nascia outra estação. Em mim, a palavra imaginada.
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José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

quarta-feira, 23 de julho de 2008

momentos


pintura - Entrada dos Cruzados em Constantinopla de E. Delacriox

Quem não tem sonhos e glórias?
Muitos, não poucos, certamente ...
.
Mas esses tenho-os eu
na pretensão que me é íntima e honesta.
Não os pedi.
Nem peço.
.
Se eles apareceram
nasceram
no momento
em que abri os olhos.
.
04. Junho. 1980
Johannesbourg/ África do Sul


José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

segunda-feira, 21 de julho de 2008

outra fala

pintura de V. Van Gogh

vem serenamente cumprir o ritual da noite
como o cumpro em todos estes dias sem nome
sem imagem de luz no recorte da cidade.
e não será por me pegares na mão
por me mostrares tantas ruas que nunca vi
que os meus olhos adquirirão outro conhecimento
outro encanto, outra fala saída do corpo
ou desta boca que enumera o teu sorriso
e o espraia em ruas de outras paragens?...
.
vem serenamente comigo cumprir
as vozes da manhã na lonjura da vida
já que as ruas têm nome nos recortes da cidade
e a noite tem o seu ritual no teu rosto.
.
José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Princípio II

pintura de Gaspar David Friedrich

Subir por dentro das nuvens
como pássaro gelado
ver através dos vidros
da nossa visão branca
descer à realidade sem fumo
como quem atravessa a noite
ou tacteia as esquinas soltas
de quem dorme sem dormir.
.
Paralelamente
alarga-se o mar de encontro à montanha
como se o suspiro de alguma vaga
procurasse o rasto de Apolo
por entre o nevoeiro branco.
.
José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

domingo, 13 de julho de 2008

Luz de Dezembro

pintura de Turner
à Isabel da Nóbrega e ao José Saramago

Deixemos que o tempo passe
deixemos que passe o vento
pois só a memória nasce
dos ecos do pensamento.
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José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986.


sábado, 12 de julho de 2008

Último gesto

pintura Pietá de Vincent Van Gogh

Pisar a dor, mãe, pisar a dor destes calcanhares doentes, destes pés enxutos por tanto passeio andado. Pisar a dor, como quem sente na alma as lágrimas soltas, as palavras breves, a terra semeada de cinza, as máscaras que nos molham o rosto.
.
Pisar a morte, mãe, pisá-la no vil desejo de quem sente medo e a descobre. Olhá-la, senti-la na forma dum último gesto - intruso tempo - lembrando-nos como memória do que fomos e a memória de como nos imaginarão.
.
Pisar a dor, mãe, pisar a morte. « Como se as pudéssemos pisar, ingénuo José!» A dor é vária e a morte única. Transfigurada é a imagem que criamos.
.
José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Se... em realidade


pintura de Edward Hopper


Se eu tivesse tempo de ser tempo
se o tempo tivesse tempo de ser eu
talvez que o tempo fosse mais tempo
e eu tivesse tempo de ser mais eu.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Setembro ritual

pintura -Banho Turco- Jean Auguste Dominique Ingres

ao Manuel Alegre

Sete vieram as luas
cheias de cansaço
sete as donzelas nuas
num vago traço.

Sete vieram
sete de desejo
sete donzelas em beijo
no meu abraço.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

O eco e a cidade


pintura de Nadir Afonso


bastavam-me os teus olhos
e a noite
vinha com o canto dos navios.
serena viria a sombra
e o teu eco
pelos rios.

bastavam-me os teus gestos
e a cidade
corria lado a lado junto a nós.
branda a silhueta
da saudade
na minha voz.

bastavam-me os murmúrios
lentos
e as tuas mãos cingidas ao meu corpo
como cadeias de ventos.

tudo bastava, meu amor.
o sol
preso na distância
traria o eco
o olhar
e a minha ânsia.

Lisboa, 01.Julho.1983

José Manuel Capêlo, Enche-se de eco a cidade, Átrio, 1989.

sábado, 5 de julho de 2008

Regresso Tardío

pintura de Salvador Dali


Me arrancaran tan pronto de casa de mis padres!...
Por desgracia había descubierto el sol,
el mar ya me empujaba hacia una tierra extraña,
y aves diversas, que nunca conocí,
volaban sobre con gritos estridentes.
El casco del navío avanzaba, dejando en la estela
olas de espuma que desaparecían más allá
-por donde habían venido-
en el difícil recuperar,
no fuesen a pasar los años, conscientes
de mi frágil razón.

Me arrancaron tan pronto de casa de mis padres!...
Cuando volví, tampoco ellos estaban...


Regresso Tardio

Levaram-me tão cedo de casa de meus pais!...
Ainda mal tinha descoberto o sol
já o mar me puxava para terra estranha
e aves diferentes, que nunca conhecera
voavam sobre mim em gritos estridentes.
O casco do navio seguia, deixando na esteira
ondas de espuma, que se perdiam para lá
- donde tinha vindo-
do difícil do voltar a ter
não fossem os anos a passar, conscientes
da minha inconsciência de razão.

Levaram-me tão cedo de casa de meus pais!...
Quando voltei, também eles não estavam lá...


José Manuel Capêlo, Y si no existieses?/E se tu não existisses?, Edición de Ángel Guinda, Olifante, Saragoça, Espanha, 2003.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

YouTube - Ana Cristina Cesar - A Teus Pés

YouTube - Ana Cristina Cesar - A Teus Pés

A LINHA DA TERRA É O QUE NOS SEPARA




pintura de Di Cavalcanti



para a Ana Cristina César, poeta brasileira


Não te mates nesse dia
não morras Ana.
Os segredos são violentos quando são sãos
as marés azuis quando se enchem
e a visão da terra é redonda como a linha do horizonte.

Não te mates nesse dia
não morras Ana.
Cada palavra tua é lágrima acesa no coração dos homens
deserto aberto no nascimento das flores
risco tracejado no voo circular das aves em pleno céu.
"Todos achamos que somos
Fernando Pessoa"
- dirias tu.
Todos os que o somos
o somos
sem sê-lo
nesta eterna razão que ele nos ensinou
deixando-nos como visão individual.
Cada um nasce com o que tem
e morre com o que deixa.
Porém, vive com o que imagina
o envolve, o angustia
o fere.

Não te mates hoje Ana
já que amanhã não morres.
A linha da terra é o que nos separa
do resto do mundo.
Ontem foi o nosso risco.
O hoje é a nossa certeza
de todo o amanhã.



José Manuel Capêlo, Palavras, Átrio, 1988.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

O SONHO DENTRO DE TI

pintura de Picasso "Abraço"

Corri no meio dos teus bosques e dos teus seios
das tuas palavras e dos teus gestos
dos teus sorrisos e das tuas noites;
e depois de muito cansado, adormeci no meio dos teus braços
enquanto a noite nos tomava
após termos sonhado para dentro um do outro!

Querias mais belo sonho?...
Quando o dia nascer, viveremos outro dia
entre os ponteiros dos nossos relógios
pontuais e desacompanhados, como rochas erectas
lapidadas, visíveis, magnificamente sós...
E, quando a noite nos tomar
após termos sonhado para dentro um do outro
teremos o mais belo sonho!

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Danúbio, 1983.