quarta-feira, 29 de abril de 2009

O velho moinho transformado

Cavalos de Néptuno, de Walter Crane

O velho moinho transformado
acolhia-nos com a pedra mó no lugar do sagrado, bem fixa
como a estrela polar que nos encaminhava as mãos.
O corpo. O instinto.
Deixamos para trás o mar
na longa onda que nos recebeu em pleno
como se o voo da gaivota, que entretanto passara
anunciasse o clamor dos deuses na era plena...

Então, eles escreveram para que se anunciasse:

Aqui,
junto ao grande mar-oceano
em que navegámos as nossas ânsias, medos, desejos
calados ficámos, falando somente, e em uníssono, no oiço-te e ouço-me
em que contemplámos os teus olhos ligeiros, brilhantes, únicos.


José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

terça-feira, 28 de abril de 2009

Da louca paixão do corpo

Amor sagrado e profano, de Ticiano

Mais do que a verdade dos sentidos
é o que corre pela mão do vento que nos cerca
inundando os vales que as mãos procuram
e os nossos desejos ferem de ânsia.

Impossível dizer que a indiferença está em nós
quando um olhar surge. Possível e certo
é marcarmos o segundo com a presença do corpo
invadir o grande vale com as mãos abertas

desfolhar as margens com o orgulho do menir
sem que nos lembremos que a terra
é o lugar em que descansamos o nosso sentido.

Mais do que a verdade da vida
é a lonjura do corpo em que nos afogamos
e bebemos o delírio, o instinto e a indiferença.

José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

domingo, 26 de abril de 2009

A CINTURA DAS LÁGRIMAS

desenho de Parmigianino
para o Henrique Madeira


Ainda
a cintura das lágrimas
nos olhos escondidos ..... mas brancos
pelas luzes sombreadas
que arrefecem a alma.....no frio da praça.
.

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

sexta-feira, 24 de abril de 2009

O RASTO DO POEMA

Manhã, de Camille Pissarro

Viera com a madrugada o rasto do poema
o sentido das luzes a apagarem-se dos candeeiros
a grande mancha da cidade a aparecer visível
e a minha grande alegria ao sentir-me vivo.
.
José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Janela

pintura de Jan Vermeer
para a Ema Brandão


Gostava de ter tido um olhar.
Porventura um sorriso
mesmo que não fosse
(e só)
para agradar ao espelho.


José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Qualquer realidade é como uma andorinha à procura do beiral da Primavera

pintura de Albrecht Dürer


Nada (mais) resta a não ser o tempo fazedor de passagens fáceis, jardins públicos, mãos abertas, olhos nos olhos dos que comem pão amassado pela dureza das árvores, pelo contorno dos lábios, pela facilidade da voz. E há o sol, imenso roteiro de peregrinações, ruas paralelas, alianças nos dedos, tapetes de relva verde e o ocaso dos bancos dispostos ao acaso. E o mar de ondas vertigens, pássaros salgados, gestos de espuma e rosto de rochas esfíngicas, esculturas marsupiais de ventre para fora a lembrarem sombras apanhadas ao vento. E há ainda, o rosto que se espanta de encontro ao soluço do dia, de encontro à mentira da boca, de encontro ao silêncio do gesto que encobre a alma. Nada resta, a não ser, sonhos! Há passagens no céu que o demonstram, frutos na terra que os habitam, palavras que os espreitam sem lhes tocar, como se toda e qualquer realidade conseguisse apanhar um sonho na palma da esperança, vã. Qualquer realidade é uma andorinha à procura do beiral da primavera, quando as folhas se erguem ao vento, ou quando, o mar se recolhe mansamente à queda areia. No sítio da primavera, há sempre uma árvore levantada no meio da impossível vegetação. As rochas suam com refluxos de espuma e o grito que se ouve, é menos sonoro porque se não distingue na folhagem do vento. Nem no entercalado do casario. Juntam-se os (i)mortais, enquanto homens: nados, voltados de barriga para o lado, completamente cheios, no grão da publicitária esperança.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

domingo, 19 de abril de 2009

Lugares de todos os lugares

baptismo de Cristo, de Pietro Perugino
.
a minha tia-madrinha Isabel Capêlo Gonçalves


Sabes tia,
tudo o que contigo aprendi nessa infância aberta
entre a fugidia maravilha dos dias jovens e o anguloso destino
dos dias preparados por sábias mãos, o encontrei nessa terra albicastra
que me foi lugar de nascimento, sedução e lembrança.
Contigo vivi o cheiro do azeite das ladainhas a iluminarem santinhos
postados em nichos e pequenos altares, aqueles a quem expressavas a tua fé
romana, outrotanto pagã, entre deuses e demónios que te perseguiam e enlutavam
principalmente quando acendias ou incensavas cadinhos de intenções
naquelas noites em que a substância dos dias e o enredo dos homens
faziam oráculos todos esses que se comemoravam para lá de todas as datas.

Sabes tia,
também jamais esqueci que essa linha recta invisível, mas seguríssima
que enfileira Monsanto com Idanha-a-Velha passando por S. Pedro de Vir-a-Corça
por essa ermida escondida entre penhas e silêncios, feita de mistérios e segredos
se tornasse um dos lugares sagrados que as pedras guardam e a terra cala
ou se lembrasse como princípio e fim de um rito que se prolongou
até que os homens se apercebecem de que não é com o furor da guerra
nem com os enganos da paz, que tudo se esquece ou apaga
mas sim pelas frases que se murmuram e prolongam pelos dias
— de todos os dias, até aos dias das pedras e das estrelas —
em que as evidências se colocam e se decifram tão distintamente
como qualquer documento deixado em papel, madeira ou pedra.

Sabes tia,
o meu poder, aquele que baptizaste e sagraste com a tua mão
não foi tirado do vento nem dos olhos dos homens: veio do ciclo da terra
dessa mesma que me ungiu como equinócio e solstício
de verões e invernos que se prolongaram e juntaram, como as marés
— esse vaivém contínuo de movimentos de horas e dias.
De ti, tia, guardo o encantamento do segundo e do lugar
da tua mão e do teu riso, também dos teus gestos e memórias
para que saibas, já que não precisas de me lembrar, porque o descobri
que a soma da realidade da vida, desta terra que pisámos e guardámos
é a existência: a eterna lembrança feita, na visão da sombra e da luz.

José Manuel Capêlo,


Lisboa, 24 de Outubro de 2002

sábado, 18 de abril de 2009

COBARDIA

pintura de Amadeo Modigliani


Apetece-me gritar o teu nome
para que todos o oiçam
e fugir depois...


José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Primavera


Vénus Verticordia, de Dante Gabriel Rossetti

A laranjeira que me ofereceste
é a mais bela árvore do meu jardim.
Enquanto que as outras desaparecem ou vão secando
a tua cresce e expande-se com os seus frutos
a sua seiva nova, a majestade intacta.
Poder dizer-te que começou a Primavera!...
Mas que sentido tem isso tudo
quando a lembrança do tempo é lembrança anterior
a tudo o que se vem afirmando...naturalmente
como naturais são os nossos olhos ou as nossas palavras
o rigor que com que dizemos: amanhã é um dia eterno
e não estou cá para o ver. Disse-o em Paris
quando Paris era a capital cultural do Mundo.
Repeti-o em Londres quando Londres se começava a libertar
da oligarquia da igreja católica e se tornava a Meca dos protestos
dos novos ensinamentos, das novas descobertas marítimas.
Mas para que te digo eu isto tudo
quando sei que a laranjeira que me deste
é a mais bela árvore do meu jardim.

José Manuel Capêlo, publicado no romance de Sabina Ricagni, Heróico Fogo da Primavera, Zéfiro, 2008

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Fogo

Casamento do Céu com o Inferno, de William Blake


Deitem-me à sombra do loureiro
para que descanse nos sonhos eternos
junto à pedra tumular que ganhei aos celtas
gravada que fizeram a sua suástica
de braços redondos, seculares e idênticos
Deixa que me sepultem entre os dois
Para que me lembrem nas cinzas
Em que me quiseram desfeito.
Lembra-me no silêncio
para que o meu sorriso seja o mesmo
sempre, sempre igual ao que te repeti
ao longo de todos estes dias, estes anos
igual à força duradoura de um amor eterno.

José Manuel Capêlo, publicado no romance de Sabina Ricagni, Heróico Fogo da Primavera, Zéfiro, 2008

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Promontório

pintura de Eugène Boudin

Como um sinal do vento, o promontório ergue-se pesado de encontro ao grande mar-oceano. As casas aglomeram-se no amontoado da vila e a grande fé é correr de encontro ao mundo que se esconde para lá da invisível luz.


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

terça-feira, 14 de abril de 2009

ENTREGA

Homem com mulher nua, de Pablo Picasso



Regularizo ......molemente ........o passo
finjo que brinco .............com os olhos
destapo ........a tampa ........do universo
e ........entrego-te
de bandeja ........os meus dentes.

Faz deles .......o que quiseres .......menos
colocá-los ........ na tua ........ boca.



José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

domingo, 5 de abril de 2009

Infinito em transparência

pintura de Thomas Gainsborough

para Iris May Walker

Tudo o que existe, pode existir para lá do que os olhos vêem. Nada na terra é igual; nem as mãos que a construem para lá do que é. Um rio enche-nos de infinito sossego. O mar de brusca solidão. O céu de infinita melancolia. Os homens de irremediável pavor. Tudo se mistura com a delicadeza das folhas em estranhíssimo bailado por entre o intrincado dos ramos. É folhagem e o manto da floresta. Mas tu, que és mãe, neste universo sedento e alheio, podes imaginar o que sinto ao olhar o cansaço dos olhos, o peso das mãos, o movimento das folhas que o vento levanta. Tu que és mãe, podes saber que te sinto um imenso rio, um infinito em transparência.


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Com a paz nos olhos cheios

Inspiração do poeta, de Nicolas Poussin

Com a paz nos olhos cheios, olho a noite. Que me importa que ela me não olhe, se eu a olho? O grande manto fascina-me e amedronta-me, como situação paralela e singular que não consigo desfazer. Há em mim, perturbação, arrepio encalorado e estranhíssimo, como se uma fagulha de imenso frio, me varresse e me penetrasse com a ligeireza de um estilete. Os olhos enchem-se de grande mistério, do que está para lá da razão normal e concebível, tentativa impossível de descortinar o que se sente, mas que se lhe não pode dar forma. É como um grito saído do peito dum morto. Como um som gritado de dentro da terra por animais mumificados. É estranho e fantástico porque acontece com frequência e não com a raridade que lhe faz a excepção.


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Oh! minha Ilha-Verde da paixão

Rochedos em L'Estaque, de Paul Cezanne

Oh! minha Ilha-Verde da paixão

como a nossa Verdade não se esconde, nem se encobre
não tapa o que o sol descobriu para nosso perfeito defeito e conforto.
Este, o grande mistério-verdade que a terra nos proporciona;
porque sabendo-nos, sabe-se!
Sem hipocrisias, sem fingimentos, sem adulterações
na pequena fábrica do nosso aconchego e enlevo.
.
Como razão de muitos dias
segredas-me o teu querer e a tua paixão, à mesa do tempo
por entre o deslumbramento das lágrimas
na amadurecida ausência das perguntas
no transbordante recolhimento das respostas
na impenitência que te faz perfeita
.
- luz única da Luz!
.
José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

quarta-feira, 1 de abril de 2009

MONTESEGURO

pintura de Jean Fouquet


para o Lud

Tiraram-me de cima as vestes de esmeraldas
enquanto adormecia.
Uma Dalila no tempo
cortou-me os cabelos
e ao som de marchas
fui parar a um cemitério sem ciprestes
enquanto homens juntavam piras
no centro do castelo
para imolarem outros-tantos
que se juntavam nas masmorras.
Perdera-se o vaso
mas ganhara-se o reino dos céus
enquanto a fortaleza permanecia calada
- lá no alto-
transponível por uma só entrada.
Movimentavam-se aí as sombras dos albigenses.


José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983