segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Poema de Ângelo Monteiro a José Manuel Capêlo


Como os templários em que a roupa
branca deveria apodrecer com o corpo
preparada apenas para os dardos
dos inimigos da Cruz:
assim nossas almas
depois de chamados a salvar
o Santo ( e eterno) Sepulcro do Senhor
transpassaram as antigas vestes
irmanadas na pureza imanifesta
além da passagem para sempre suspensa
de inclemente fogueira sobre a terra.

Ângelo Monteiro, (Recife, 1 de Março de 1996)

Poema publicado na revista A União, João Pessoa, Pernambuco, em Junho 2010, num artigo de homenagem a José Manuel Capêlo.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

VIDA, DOENÇA E MORTE


pintura de Georgia O'Keeffe


Quando o tempo era tempo
as ramadas quedas remexiam-se nas árvores
nos troncos enchidos, secos e fortes
lançando sementes na seiva p'ra vida
atirando p'ro céu azul, aroma, frescura
na dança diária da própria existência.
.
Quando o tempo era brisa
as ramadas quedas oscilavam nas árvores
nos troncos enchidos, secos e fortes
lançando à deriva sementes cortadas
atirando p'ro céu branco, aroma infeliz
na dança diária da própria morte.
.
Quando o tempo foi vento
as ramadas quedas partiram-se das árvores
dos troncos enchidos, secos e fortes
roubando sementes, frias e fétidas
atiradas ao céu de chumbo
na dança eterna da própria morte.
.
José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha,1978

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Hoy el Mar es Mas Azul Que el Cielo...

poema de José Manuel Capêlo

domingo, 6 de junho de 2010

pintura de Plínio Palhano


A GLÓRIA DA AMIZADE EM CAPÊLO

Ângelo Monteiro

Num mundo cada vez mais instável e inseguro, em que já não se sabe o que é realidade, nada mais prodigioso do que uma amizade que ultrapasse a contagem dos dias e sirva de justificação para a própria existência. Assim foi a amizade para José Manuel Capêlo.
Dono de um caráter generoso — como o dos grandes guerreiros da vida e do pensamento — tanto em seus cuidados quanto em suas expectativas em relação aos amigos, dois dos seus gestos, entre outros, ficaram em minha lembrança. O primeiro quando, preocupado com o meu relativo ostracismo, resolveu me publicar, por sua própria conta, através da Aríon, sua editora em Lisboa, em 2002, sem, em nenhum momento, comentar comigo sobre os custos da edição. O segundo quando voltou, sobre dezenas de quilômetros já rodados em direção a Madri, para resolver, em Lisboa, o problema de visto de um amigo comum que tinha vindo fazer um doutorado em seu país.
Com sua morte — logo no dia seguinte à sua última mensagem eletrônica por mim recebida — se dissolve o vínculo mais vivo que me unia a Portugal e, através dele, à sua grande poesia. Pois Portugal, enquanto país que preza a própria memória, fez de José Manuel Capêlo — o poeta e aventureiro do espírito, como lhe chamei certa vez — o herdeiro simbólico de dois povos: o dos profetas e o dos navegadores.
E a amizade, assim como a poesia, é sobretudo o reino da memória: todas as coisas, uma vez existentes,em ambas permanecem, pois sem Mnemósine as nove musas, e entre elas a da poesia, não conseguiriam se salvar da mais completa mudez. E entre mim e José Manuel Capêlo a poesia era inseparável da amizade, e foi essa correspondência, que delas resultou — permeada pela vastidão do Atlântico — cheia de afinidades, surpresas, variações de humor e idiossincrasias que, como um longo fio de vida e de memória, se rompeu para sempre. E sem palavras me deixou, além das ciladas da vida, ante as ciladas mais insuspeitadas da morte.
Nada mais triste — mais até do que uma relação rompida em vida — do que uma correspondência interrompida pela morte. Passamos então a saber que mais importante do que aquilo que dizemos é aquilo que ficou por dizer. E o que ficou por dizer é, para todos os efeitos, algo que nos ultrapassa. É quando o peso da brevidade de tudo nos alcança com seu máximo poder de aniquilamento.
Atingimos, finalmente, a consolação de intuir que a glória da amizade está na sua singularidade. Um amigo nunca pode ser repetido, portador de uma unicidade não encontrável em mais ninguém. Ninguém, portanto, vai repetir Capêlo na cadência da sua voz carinhosa, em sua gentileza, em seus dons de sedução e em seus rompantes de euforia ou de generosidade, para lá dos momentos de tristeza e de irascibilidade que, por vezes, o acometiam, fazendo com que seus olhos se enchessem da fúria dos mares e sua voz, de belo timbre, se transmudasse em vibrações de tormenta...
Gostava, sobretudo, — ora com ares transfigurados, ora entre gargalhadas e temores, — de partilhar seus melhores sonhos. Pois, além de poeta, com diversas obras editadas, fez-se, também, ensaísta e historiador, como autor de um alentado volume sob o título de Portugal Templário, em que revela uma profunda paixão pela história gloriosa dessa Ordem dissolvida, de maneira cruel e traiçoeira, pelo conluio entre um papa pusilânime, Clemente V, e um rei salafrário que atendia pelo nome de Felipe, o Belo, e reconstituída depois, sob nova roupagem, na Ordem de Cristo, no reinado de Afonso I, em Portugal.
Não por acaso terminou seus dias em Campo Maior, um dos redutos mais famosos da tradição templária no Alentejo, cidade fronteiriça à Espanha. Entre “a substância das coisas e o enredo dos homens” ele pôde dizer num magnífico poema à sua tia-madrinha Isabel Gonçalves Capêlo: “a soma da realidade da vida desta terra que pisamos e guardamos/é a existência: a eterna lembrança feita, na visão da sombra e da luz”.
Poderia, mesmo agora, quando se encontra no além de nós, dizer como Dom Quixote: “O meu repouso é o campo de batalha”. E a sua luta de templário remanescente continua, mas já sob os beijos da eternidade.

Recife, 03 de março de 2010

Artigo escrito pelo professor de Filosofia *Ângelo Monteiro, poeta e ensaísta,

domingo, 21 de março de 2010

Reencontro Inevitável (explicação do nome do blog)


Quando ainda era criança, pouco mais que de colo, tinha dois amigos imaginários, a Bi com quem brincava de dia, e um herói imaginário, uma espécie de príncipe encantado que povoava os meus sonhos e a quem eu chamava de José Manuel.
Eu acredito na reencarnação, na nossa alma imortal que já viveu outras vidas e vai voltar para viver de novo com o fim de se purificar até que um dia se possa juntar à luz que é Deus.
Por volta dos meus oito anos mudei para um colégio onde fui encontrar como colega de classe a irmã do Zé. Não me lembro dele dessa altura apesar de ele frequentar esse mesmo colégio numa classe mais avançada.
Quando comecei a ficar um pouco mais crescida comecei a observar com atenção todos os rapazes chamados José Manuel pois estava convencida que um rapaz com esse nome seria a minha outra metade.
Por volta dos meus quinze anos conheci o Zé melhor quando comecei a ir passar o mês de Setembro na terra do meu avô, na Beira-Baixa. Ele ia também para lá para casa de uma prima minha e dele. Ele era primo por parte da mãe enquanto eu era prima por parte do pai. Foram três ou quatro anos de férias inesquecíveis, maravilhosas em que ele, grande dançarino, era o meu par ideal especialmente a dançar Rock. Eu gostava imenso dele como amigo e havia já da minha parte uma centelha de chama em relação a ele mas para mim ele era o Zé e nunca o associei ao José Manuel dos meus sonhos.
De qualquer modo apesar de se passarem imensos anos em que nos víamos só de longe em longe
num lançamento de um livro seu ou outro acaso qualquer, ele nunca saiu do meu pensamento e do meu coração. Ele vivia no meu pensamento. Como o meu irmão era seu amigo perguntava-lhe o que era feito do Zé Capêlo e assim fui sabendo noticias suas até que o reencontrei em 2008.
Foi curioso o nosso encontro. Eu guardava religiosamente um retrato que eu tinha feito dele em Pedrogão Pequeno quando eu tinha dezasseis anos. Resolvi publicar esse retrato no meu blog "Constante Procura" com um pequeno texto em que falava dele. Ele encontrou por acaso o desenho e telefonou-me. A partir daí passamos a falar ao telefone todos os dias e de tempos a tempos a encontrarmos-nos ora em Lisboa se ele vinha cá ou em Campo Maior onde ele vivia.
Pouco tempo depois do seu primeiro telefonema relacionei com espanto que o meu amigo Zé se chamava José Manuel. Há muitos anos que tinha esquecido o meu herói dos sonhos de infância e a minha procura pelo tal José Manuel. Daí vem o nome do blog que fiz para divulgar a sua obra poética belíssima "Reencontro Inevitável". Penso que o nosso re-encontro estava já escrito nas estrelas. Espero reencontrá-lo de novo quando partir deste mundo. Ele deixou em mim um vazio impossível de preencher, ele levou consigo parte da minha alma.

Emília Matos e Silva - Madressilva

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Fogo

das brumas do tempo, pintura de Emília Matos e Silva


Deitem-me à sombra do loureiro
para que descanse nos sonhos eternos
junto à pedra tumular que ganhei aos celtas
gravada que fizeram a sua suástica
de braços redondos, seculares e idênticos
Deixa que me sepultem entre os dois
Para que me lembrem nas cinzas
Em que me quiseram desfeito.
Lembra-me no silêncio
para que o meu sorriso seja o mesmo
sempre, sempre igual ao que te repeti
ao longo de todos estes dias, estes anos
igual à força duradoura de um amor eterno.

poema de José Manuel Capêlo, em "Heróico Fogo da Primavera", Ed. Zéfiro, 2008

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

RASTO NA SOMBRA

Retrato de José Manuel Capêlo, pintura de Emília Matos e Silva (madressilva)


Há uma luz triangular
debaixo do meu caixão de vida.

Ergue-se como estrela
e
afasta-se como sombra atormentada.

José Manuel Capêlo, em Fala do Homem Sózinho, Ed. Danúbio, 1983

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Faleceu hoje o Poeta, Historiador e Escritor José Manuel Capêlo. A minha homenagem ao homem e ao Poeta.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Falaram-me do tempo como da saudade

pintura de George Braque


Falaram-me do tempo como da saudade.
Falaram-me, como se a chuva fosse irmã do sol; como se a ave fosse irmã da montanha; como se o labirinto fosse irmão do impossível.

Falaram-me de tudo e de mais alguma coisa. Até do céu, como se ele fosse a alegria da terra, vista pelo panorama das árvores. Falaram-me dos homens com os defeitos dos anjos e dos anjos com o sexo dos homens. Falaram-me de tanta coisa, que só de ouvir me cansei. Cansado, como se cansam os santos, os anjos. Os deuses.

Dei comigo a vaguear pelo tempo. O tempo de espera, pois que todo o outro, o que então me sobrava - e era pouco - dera-o para mim, que tempo não tinha, senão a lonjura das ruas, delicadamente dispostas na simetria da cidade. E a cidade rondava com os aspectos. Com os aflitos. Com os medos e os defeitos. As delícias e os enganos. A cidade transparecia com a luz, no calor do dia, na sublimidade da noite. Tornava-se vaga, de mãos cheias, predispostas e adormecidas, recolhida nas vozes que se distinguem gastas ou nas árvores que emudecem vivas.

Há um correr esplêndido por entre as sombras, por entre os sóis. Há um correr fácil por entre as palavras e um olhar vago perante a distância, semblante admirativo em frente de um espelho.
Alinham-se frases. Animam-se gestos. Imaginam-se poses. Colocam-se imagens. Redobram-se atitudes. Só que entre o vago e o vão, há o falso em tudo, se bem que o espelho exista e os homens sejam verdades.

Animo-me a pensar, e a verdade é um fruto que apetece distorcer. Olho-me nos olhos, sem espelho. Imagino e percorro o caminho que se incendeia de aspectos. Fabrico palavras e alinho sons. Esta cidade é bela como nenhuma! E contempla-me.
Deus é grande e o dia é um vazio de todas as nuvens, com todas as sombras. Com Ele, podemos espreitar as nossas ilusões, aquelas que nos trazem fecundos e atentos, sitiados de terra e movimento. O sol é o outro lugar da memória, com a luz no lugar da visão, tendo a distância no lugar do perto. O sol é o sexo que se mantém tapado e não desperta, o início da grande bebedeira que se esfarela pela noite. Lugar onde é fácil encontrar os cretinos e os amantes déspotas, pintalgados de ânsias e cabelos longos, olhares distantes e mãos próximas.
É com o dia, é com o sol, é com esta luz tremendissíma, que a minha paciência pára e me transforma numa espécie de menir - rocha lapidada, visível, magnificamente só -, me baptiza de medos, receios, desvarios, inoportunidades.
O sol com toda a sua cegueira.
Inebriante. Pródiga. Longínqua.
.
José Manuel Capêlo, Quanto desta terra é, Átrio, 1992

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Silêncio Azul

pintura de René Magritte


Neste silêncio de rochas talhadas
nesta maresia de ecos distantes
soam contornos de bocas fechadas
em palavras de amantes.
.
José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Quem vem habitar estes dias de páginas soltas

pintura de Emília Matos e Silva


Quem vem habitar estes dias de páginas soltas
e linhas cruzadas? Estes sóis de não regresso
onde me encontro? Estes lugares de fuga e
eterna pressa?

Apenas, e só tu!

Que poderias partir para as loucuras da terra
fingires-te ausente dentro das estrelas
repatriada por terras de nómadas sedentarizados
fabricante de enormes blagues e sentidos vazios
mas sempre ficarias, inocentemente longe.
Que poderias fugir com os teus braços e as tuas mãos
com o riso branco que te emoldura o rosto
com as tuas pernas esplendidamente delineadas
mas não deixarias de seres-tu, eternamente presa
como se a clepsidra funcionasse ao contrário
ao contrário de tudo, sem que nada fosse igual.

Que loucuras poderíamos nós fazer?
Que segredos a segredar aos outros
que não os que segredávamos a nós mesmos?


José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991