sábado, 22 de agosto de 2009

O que não merecemos!


pintura de Paris Bordone

Longe, tu e eu,
perdidos nos quilómetros que nos separam
por migalhas de tempo,
no olhar do relógio, que são horas
e que se perdem, a olhar os minutos.

Longe, tu e eu
que não merecemos, porque não esquecemos
que o tempo foi nosso
e que passou sem que déssemos tempo,
ao tempo, para nos vir buscar.

Longe, tu e eu
amantes do belo e de nós
que não nos possuímos há dias
e, que nos são tão longos e brutais
que não os merecemos.

Longe, tu e eu
um do outro!

José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha, 1978

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Tangencial

Os amantes, de Pablo Picasso
A meus pais

Oh! como a noite é mãe dos eternos vazios
alvéolos cheios de nós .....da nossa língua..... do nosso
desejo a confundir-se com as colunas erguidas
no largo enfrente em que adormecem mendigos
poetas ...pintores... compositores do ocaso e do medonho
flagelos da sociedade que não os atina ....suporta
como uma grande fechadura de chave única.
.
Que se rebentem os cadeados ....as portas senhores
que se rebentem as amarras do condicional
da estrutura que aflige e impede e desmoraliza.
Os grandes sopros vieram do pensamento.
Acabe-se.... rebente-se.... estoire-se com o raio da política
que é o arcanjo de fogo de céus fechados.

Amemo-nos com o que temos e somos.
Vem Encamdala..... vamos destruir todos os sonhos
dormir nos laços da noite .....nas camas de ferro
nos prédios de aço e cimento ....nas escadas de madeira
nos buracos das vigias ....nas anteparas dos falsos camarotes
e esqueçamos as vozes vindas do alto pedestal
rígido.... frio ....cómico ....vicioso ....vociferante
plagiante.... anómalo.... irritante ....beato.... sacrílego.

Que tudo se esqueça ....que tudo passe.... que tudo
contorne as tangentes do planeta e os ângulos
e os vícios e as paredes que nos quiseram impor
e o mal que está por detrás do bem
e o que está pela frente de nós-mesmos
e o que há e o que não existe
e o que poderá haver no verde.... no negro ....no vermelho
no espelho dos nossos olhos de mãos abertas
nas costas de todos os que caminham à nossa frente.

Amemo-nos Encamdala e gritemos que o
céu
somos nós!


José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

ETERNIDADE E SENTIDO

Nascimento da terra, de Emília Matos e Silva

Fizeste com os teus lábios um arco grande
no meu peito. As tuas mãos tornearam-no
com a tua boca a procurar o meu gesto
e este a perder-se na noite almofadada dos lençóis.
O mínimo sussurro era o vento que saía de nós
apanhados no grande bloco de cimento armado
ferindo-nos no mais louco enternecer
com os fluxos da luz a saírem do écran
mais sumido tapado pelas gotas de suor
que em cascatas de vida vinham correr
das testas mais suaves deste mundo.

Ah! não, como não se esplêndido era o fumo
seco a entrar pelos nossos olhos pelos
nossos poros pelo vítreo semi-cerrado do
nosso olhar? ! Eras tu e eu..... únicos
debaixo do mundo que adormecia com uma calma
estonteante com a facilidade de quem
não tem nada para dar nada para amar
nada para beliscar a curiosidade e o sentido
da uma e meia da manhã já quando a noite
parecia ser igual parecia ser idêntica
fria vazia despida de corpos e de amor.
Porém, lá estava a luz vermelha o cabo
do telefone a chamada fácil a gritar pela
noite fora a voz longa e cansada o travar
brusco do carro a caminhada em penumbra correria.
Era o abraço e a noite das mil noites sonhadas
há longos anos de muitos anos como se
a eternidade fosse a palavra mais próxima
a mais projectada igualdade nas duas mãos gémeas.

Grita meu amor, pois o sol entrou com o sono
e a luz veio com a madrugada do outro dia
desse dia em que as nuvens passaram por baixo
do castelo de sonhos que fizemos na noite de
todos os sentidos únicos selvagens e possíveis.
Diz que o fim nunca está próximo nem presente
que não está aqui nem ali em parte alguma
e que os nossos pés são passadas de cavalos brancos
a correrem loucamente na areia das infinitas praias
com as ondas a salpicarem-nos não de espuma
mas de vento esse vento batido entre o horizonte
o nosso olhar a nossa língua e os nossos gestos.

Ah! os nossos corpos como brilham!... Chamam-se
estrelas, sabes? Deixa que pegue a tua mão e a
traga aos meus lábios que a sinta e a veja
que a adormeça no meio dos meus cabelos e a solte
à procura de mim de ti da palavra que escrevemos.
Vem, Encamdala meu barro coberto do meu suor
sem nunca te esqueceres que fizeste com
os teus lábios um arco grande no meu peito!


José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Fundo indicado diferentemente


pintura de Vilhelm Hammershoi

Acho que não
que nunca esse tempo foi tempo
de cicatrizes
de borboletas na mão
de berlindes nas algibeiras
de ruas que nunca seguiam
nem de passos que tivessem pressa.

O que também acho
é que bem podia ter sido diferente
distinguível como
um outro caminho
um outro gesto
um outro ar
uma outra forma que pudesse
parecer-se diferente.

Só que
(e a realidade é uma)
eu teria gostado de ter as minhas mãos
em sítios impossíveis
em falas impossíveis
em risos impossíveis
em olhos impossíveis
tão impossíveis como o impossível
de que tudo isso acontecesse.

No fundo
nem seria sonho
porque os sonhos não se sonham assim
(eu também não sei como é que os sonhos se sonham ...)
nem sonhar assim seria sonhar
nem sonhar seria o mais indicado
para a condição de fundo.

Mas o que eu posso dizer de certeza
é que com possíveis e impossíveis
com cicatrizes borboletas berlindes
ruas passos caminhos realidades sonhos
a mão segue sempre a mesma linha
e o tracejado risca-se
de encontro ao descomunal penhasco
que se nos posta à entrada.

Na feia noite de Janeiro
entre o dia ido que foi ontem
e o dia a ser que será amanhã
há o dia de estar que é o de hoje
igual ao de muitos séculos
igual ao de muitas semanas
igual ao muito igual que se desconhece
mas sempre primeiro e único
quando os outros se sucederem.

No fundo até pode ser
que a realidade seja
só e apenas
o parecer-se diferente
como sonho menos indicado
para a condição de fundo.

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983