sábado, 28 de fevereiro de 2009

DA TUA BOCA

Rapariga com brinco de pérola, de Johannes Vermeer


Da tua boca ergueram-se os olhos da minha infância
Da tua boca saiu o meu gesto antigo
Da tua boca chegaram-me os tempos de rebeldia
Da tua boca ensaiei os primeiros contornos
Da tua boca escutei as primeiras vozes
Da tua boca caíram os dias e levantaram-se as noites
Da tua boca correram imagens que já esquecera
Da tua boca inundou-se-me o gesto
Da tua boca cresceu o meu sorriso
.
Olhei um ponto perdido não sei onde em que distância
e fui feliz para casa onde sabia encontrar a tua boca
.
José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Suprema intensão

pintura de Paul Klee

Nada sem forma. A rua larga, albicastra, a forma esguia duma face em perfil, um sorriso num copo cheio de mim. Meu pai ... Quando sou eu? Talvez, um dia, quando o mar se chegar mais próximo. Quando a terra deixar de vacilar, ou quando a natureza se mostrar na sua plena grandeza, sem os desvarios dos homens. Quando Deus e o Diabo quiserem, sem que me modifique ou esqueça, sem deixar de pensar que por aqui passei, menir antepassado, narrativa em pedra, silhueta apontada à imensidão árida. Quando me procurarem e encontrarem na porção de tudo e nada!...

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Ruas imensas dum certo desespero

pintura de Joseph Mallord William Turner

Pelas tardes em que o sol começa a afogar-se no mar, que vejo por entre o ruído rústico das casas, tenho a impressão de que levantar-me me custa. Sinto que as pessoas me apertam os ombros com as mãos como a quererem dizer-me: «estamos aqui!», únicos, na pele de todos os selvagens vivos, canetas esfomeadas, línguas sedentas, ruas imensas dum certo desespero. Mas quem não estará a mais serei eu, que (só) me passeio na luz e na sombra, sem o minímo de remorso ou qualquer peso nos ombros. Sem ter que dizer que o mundo falseia as palavras, porventura, os gestos, nos lábios das testemunhas falsas. Quem não é falso, sou eu, que amo todas as luzes e todas as sombras, todas as madrugadas e silêncios, como se não houvessem mais sóis a iluminarem as faces que se arredondam neste muro de paredes que nos celam. Sem que oiçam as nossas vozes.


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Vaga visigótica

pintura de Jean-François Millet


Enquanto o promontório se alonga na espuma branca das ondas verdes... Enquanto a tua casa se suspende nas falésias abruptas da terra selvagem... Repito no eco deste cachimbo aceso, as palavras que me segredas, ao pressentires o horizonte: « Aqui nasce a terra que me fez encontrar-te, pedra angular, sagrada, inóspita. Revive em ti, o meu segredo. Enquanto guardares a voz dos nossos avós visigodos, terás a alma da consciência. Quê de lusitanos?... Esses, tinham desaparecido há muito dos montes baldios da estrelar montanha. Hermínios, lhes chamavam...»

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Ode infinita


pintura de Carlos Reis

Oh! Pátria, ver em ti a minha solidão
ser em ti vagaroso como o rio que nos cerca
compreender que a vergonha não és tu nem eu
nem tão pouco o castanho das madeiras
mas as angulosas cabeças de chapéus de feltros.

Imagina-te anzolada à minha dimensão metafísica
à ignorância colectiva que é aparentemente um fracasso
ao espaço hesitante do subproduto
à vergonha honesta de que vale mais importar
do que mingar tumularmente de fome.

Oh! Pátria, nada me impede de pensar
que, também tu, possas ser sempre eu
lastimável, acabrunhado, indeciso
recuando ante todo o vulto sentado
lembrando o meu passado sem história
no presente movimentoso e aparente.

Pensa que não vim de ti, mas me absorveste
gélida, tórrida, transparente, inofensiva
mãe, prolixa e diminuída, de achados
de líricos que se comprazem à modulação do canto
e se rasgam em lágrimas à hora do Natal.

Oh! Pátria, ver em ti a minha solidão
e saber que também a tens.
Não saber nada e dizeres que me cale
mantenha o mesmo passo e o mesmo olhar
suba aos edifícios e desça aos esgotos
analise os olhos e aguarde em sereníssima contemplação.

Acho que dizer - acabe! - não basta
já que o lento movimento das nuvens
nunca simbolizou temporal
nem as persianas a fecharem-se
significa que crianças adormecem.

Lento, é todo este movimento
diagonal
indulgente
formidável
cómico
com todas as suas arenas modificadas
de estranhas larguezas
lembrando chaminés
e o mais que se entrega num leito almofadado.

É tempo de dizer que nunca me tive
(nunca te tive)
nunca passeei com a tua estranha monotonia
a tua calma aparente
simbólica
consciência de feitos inacabados
horas de partida
de chegada
choros de faces sofredoras
mãos cobardes.

Desci aonde podia
aonde nunca ninguém me obrigou
onde sabia nascer um cavalo
com cara de menino
pestanas de escorpião
mãos de foca
silencioso e sem vertigens.

A partir desse momento meti na cabeça
que a estrada continuava
seguindo, uniforme, as cadeias de montanhas
delicadíssimas plantas lupanares
tropeçando nos regatos e nas cascatas.

Para cima
haviam as pontes estruturais, magníficas
não sei de que ano, de que tempo.
Só sei que lá estavam
como tu
Oh! Pátria
manifesto profundo das minhas palavras.

E eu que nunca fui um rei
no meu planeta?!...
Nunca tive palavras
nem gestos
nem o medo dos infelizes
dos que procuram
acobardando-se no pouco que comem
olhando simbolicamente
pois foram para isso que nasceram!?...

Oh! Pátria, ver em ti a minha solidão
e sentir-te vagarosa como eu.
Que estranho destino o contemplar paredes
a olhar sés que não percebo
monumentos, pontes, estradas, rios, florestas
céus, antenas, murais, risos, imagens, curvas
como o pensamento que me alaga
me conduz e me deixa sem que nada perceba.

Como um grande vento, Oh! Pátria
o teu rosto aparece-me no espelho
salpicado de mil cabelos, mil olhos
a loucura enorme de gestos, de palavras
de desenhos e pinturas, de poemas
de frases loucas de sentidos sem sentido
máquinas e poses, grandes telas de sorrisos
fáceis manobras de testemunhos e estímulos.

Oh! Pátria, ver em ti a minha solidão
que é toda
e é nenhuma!


José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

deo-la-deu-oh-linda

pintura de Pierre-Auguste Renoir



eras pequenina nos teus cabelos longos
enquanto a cidade esvoaçava ao redor do teu corpo.
fugias com as mãos ao encontro da fonte
enquanto, ao lado, o rio corria manso
.
marginando o cais paralelo e acimentado.
da tua saia apertada, apertava-se o recorte da perna
o friso branco que te enchia o andar.
levemente suspensos, na blusa desapertada
.
os teus seios plenos, pequenos, teus
como montanhas iguais ao terreno da lua.
era a cidade, na tua imensidão morena
cabelos longos, formas brancas, corpo esguio e pequeno.

José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

amanhã saberei o segredo que há em-mim

pintura de Georgia O'Keeffe
para o Alberto Pimenta
meu amigo e Poeta do mundo


amanhã saberei o segredo que há em-mim

de resto, o sol, que despontou por cima das plantas do meu jardim suspenso deste andar de cinco pisos de altura, abriu-me o olhar enquanto espreguiçava as mãos, abria a boca, esticava o corpo e rodeava os pensamentos pelo som do eco.
era frio e vento nesse algures da distância que os dias trazem e as horas levam, com as mãos presas ao esticado do corpo, gabardina enrolada à volta de-mim, impotência de bolsos vazios, a fome a rondar os meus olhos cheios. e vêm as queixas de todos os que não se têm que queixar, das súplicas que fingiram alheamento, da lembrança dos que procuraram inventar desculpas e nos rasgos de intenção dos que raramente apareceram.

amanhã saberei o segredo que há em-mim

basta que espere com os ossos feitos pó ou que algum amigo sorria, me abrace e diga: Vem daí! saberei, então, que as mãos não escreveram em vão, que as ideias não morreram por si-mesmas, que a luz do fundo era tão igual como a luz do princípio. saberei olhar para mim e ler-me nos livros fabricados, nas palavras dos outros que me lembram e algo são.

amanhã saberei o segredo se me aguardar


José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

As árvores eram silhuetas breves

pintura de Henri Manguin


Todas as árvores têm o som da planície e a minha cama é o eco de pau e esteira em que múltiplas vezes meu pai sonhou para dentro de minha mãe. Era a África fácil e longínqua dentro dos olhos das florestas, mata de animais bravios e homens esguios, velozes, antílopes. Eu, tinha uns calções pequenos, muito pequenos a lembrarem a minha infância. E tu, meu amigo negro, de imenso arco-íris por dentro?


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Hora segunda

pintura de Wassily Kandinsky


A minha realidade não é falar de mim, como quem fala duma coisa que se ama. Mas quem melhor para falar de mim, do que eu? Quem melhor para descrever o que sinto, senão estas palavras que me atrapalham e ferem, me subjugam e são vivas? O esplêndido é o espelho? Pois que o seja, já que o olho e ele se me inclina.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Idade que se compõe, quando no silêncio e no fresco da noite

Blossoms in the Night, de Paul Klee


Idade que se compõe, quando no silêncio e no fresco da noite
cumprindo o ritual antigo, nos baptizamos de céu claro e sem nuvens
com as estrelas penduradas num chamamento breve e perfeito.


José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Na forma e no sentido sempre me marginalizei

Filosofo em meditação, de Rembrandt van Rijn


Na forma e no sentido sempre me marginalizei
sempre procurei projectar-me de encontro à lição
de que sabia ir gostar aprender. Porque, e a verdade é
não consegui aprender o que nunca gostei.
Nunca confundi a forma da obrigação
da satisfação ou do prazer de gostar.
Os discursos, cada um em-si, sempre manifestaram
uma linguagem e um sentir diferentes.
Mas tudo isto não impede as travessias do deserto, muitas e várias
em que as sagradas alianças nada valem ou a nada levam. Daí...

José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Tudo é meu, porque vem de-ti

Gioconda, de Leonardo da Vinci

Tudo é meu, porque vem de-ti
oh! amada,
minha Ilha-Verde da paixão!

Como o giocondo sorriso em que se eterniza o tempo
o lugar da casa onde se penitencia a palavra e se entrega o amor
esse modo abrasivo que é a união da paixão e do sexo.
.
José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Árion, 2000

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Daí, as horas ficarem límpidas, como um enigma;

face da Paz, de Pablo Picasso


.......................................................Daí,
as horas ficarem límpidas, como um enigma;
um grande corpo inteiro onde acontece a voz inicial;
a memória de pequenos nadas; a alegria que se vê
sente e alonga como razão essencial da luz.

José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Árion, 2000

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Que importa (sim que importa!?...)

retrato de mulher, de Raphael Sanzio


Que importa (sim que importa!?...)
o que os homens intentam modificar
- num planeamento nervoso e adulterado
força mais do seu orgulho ferido
do que propriamente da desgraça acontecida -
se as consequências em nada alteram o que está traçado
o que está marcado, o que será para sempre nosso?
A minha vida será a tua
mesmo que lhe queiram dar destinos e rumos diferentes.
Ninguém se aperceberá que a escolha foi voluntariamente nossa?
Que partiu de-mim para ti e de-ti para mim?
Que uma semana juntos valeu mais do que dezassete
ou vinte anos de acontecido matrimónio?
Ah! como a desgraçada frustração humana
é tão própria dos que a personalidade não dotou
ou em que a inteligência não permite destrinçar em pleno
pois só o desforço se manifesta importante.
Mas é a esses, que gritamos a nossa vontade e a nossa verdade.
E creiam, os bastardos, que não temos medo. Nem vingança.
Temos sim, o destemor dos que se apaixonam
dos que se amam verdadeiramente
dos que são livres por si-mesmos.
Essa paixão, esse amor, essa verdade
essa doação da Natureza temo-la nós, só-nós
a quem a Terra ungiu de amantes plenos e naturais.
Isto é: amadores sagrados do que têm... amando.


José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Árion, 2000

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Hoje há o chegar

pintura de Jean-Baptiste Camille Corot


Hoje há o chegar. Quantas ruínas
derramei em leis perfeitas? Quantas luzes
dei a olhos cegos? Quanto retorno ao nada
retirei de-mim?

Oh! aquela imensa poeira repetida
oculta fronte de dedos ágeis
existência de só existirem coisas
para lá de sabermos mistérios...

Já hoje é o chegar
esplêndido e definitivo
Hora certa do equilíbrio da nudez
segurança do sol para lá das horas
das máscaras
das vozes fáceis e gastas.

Oh! como a melancolia é grande
e o meu tempo pouco. Ou nada. Ou sempre.

José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Deixaram a terra produzir os seus efeitos

Ofélia, de John Everett Millais


Deixaram a terra produzir os seus efeitos
e que efeitos foram, sobre a luz solar!?

A alma grande dos rios soergueu-se das margens
em cânticos de verde e rochas arredondadas
com o mistério das paixões por entre os canaviais
a estrada de Marte em frente, o fluxo de Vénus ao largo
e a gruta estreita de negro aparecida.

Receberam, como sempre recebem no meio das mãos
o teu corpo arrefecido, de olhos fechados e mãos postas
adormecido num sonho vagaroso e grande.
A alma dos teus poetas inundou-se-te no sorriso
que punhas na boca pequena, vermelha e cheia
sorriso acontecido ontem, ante-ontem e sempre
já que fora teu. Breve e triste...

José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Os homens, os homens, eternamente os homens

Músicos, de Caravaggio


Os homens, os homens, eternamente os homens
reflectidos nos espelhos das águas, nos labirintos
da espessa terra, composições de sombras de exércitos ávidos
de suicídios lentos, de solidões gritadas nas paredes
paredes de tantos lugares, de tantos prédios, de tantos museus.
Venham homens, venham com os vossos poderes suster as lágrimas

e a solidão e o desvario e a morte lenta dos oceanos
porque mais fácil - muito mais fácil -
é imaginar que conseguir
muito mais fácil do que iludir o gosto e o sangue.
Venham, porque sentirão o gesto torcer o emaranhado
ouvirão os ecos crescerem, variados, nas montanhas próximas
saberão dos rios que secam em tanto deserto.

José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

há canções ao longe

pintura de Paul Gauguin


regresso à luz das estrelas com a brisa a soprar por detrás. caminho vagamente, como se não sentisse os pés tocarem o chão, momento único, distante, fértil de sensações e embaraços, grito a sair-me e a afundar-se-me na garganta, numa apoteose de multidões em aplausos de ante-estreia num coliseu de olhares. sobra-me o vento num silvo de companhia. puxo um cigarro do maço que tirara do bolso das calças soltas, coloco-o entre os lábios e faço-lhe sentir a frescura do ar em movimento ligeiro, mas prolongado. nada se me esquece. tudo se me aviva.

saboreio o silêncio da liberdade no caminho sem ninguém. sem qualquer pessoa, quero dizer. a noite é fácil e segura. respondem-me os ecos fáceis dos reflexos da sombra, nesse contraste que entusiasma, faz parar e dá para prosseguir. e sigo com as pernas que têm movimento. flexões de luzes percorrem os meus gestos e recriam-se no meu olhar. há canções ao longe na voz de um cantor de duas vozes. avanço e medito a liberdade que vou conquistando passo-a-passo.

José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

os caminhantes sem destino

Bordeaux Branco, de Juan Gris

chuva e noite no quadro efémero do dia, que é final e sono. mergulham as mentes no silêncio feito e a aragem que sopra, alivia a cidade do peso do ruído e da espiral das vozes. caminhantes sem destino são os passos, que se abrem nas ruas estreitas e largas. uns, com a verdade que os leva em frente. outros, com a brecha que o álcool derrama no sangue quente. cambaleiam, riem, perdem-se na visão toldada que os olhos recebem, distinguindo-se unicamente, porque tocam em si-mesmos pelas paredes dos prédios verdadeiros, nos andares trôpegos e cruzados, nos risos abertos, nas mãos pesadas e que julgam leves. são estes, os companheiros da noite que vemos distintos, secularmente enunciados nos estribilhos da história, nas páginas amarelentas dos grandes romances, nas figurações dos pesadelos miúdos. e quando cresce a noite, a chuva derrama-se ininterruptamente sobre os espaços descobertos que a sombra fecha.

José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Sobra a cidade com os seus mistérios

Port-de-Cassis, de Charles Camoin

Luzes num tempo solto, a varrerem a aragem dos castelos postos no alto.
Mãos que se levantam na procura dos astros que não saem do firmamento.
Casas alinhadas no contorno do mar com cabelos à espera que o vento chegue.
Risos na noite de ninguém, que é o silêncio das estradas por onde corre a paciência dos que não têm sono.
Bocas abertas à espera da fome, que é o que todos esperam e nenhum pede, pois a terra é solta e chega até aos olhos com a coragem de quem existe.
Sobra a cidade com os seus mistérios, as suas luzes, o desencantado movimento, as suas fontes enganadoramente disfarçadas, pedra angular duma igreja que não tem contornos de Sé, quiosques ribeirinhos de matarem gostos, gargantas secas à procura de múltiplos líquidos e o não acabar de certeza que se esgota.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

O silêncio

Os picos da Europa, de Carlos de Haes
.
O silêncio, este muro que nos adormece e cerca, é uma luz que se amedronta, abafada pelos gritos dos que mordem as palavras. Nunca poderia pedir o silêncio entre celas que não sinto. Mas há tantos que podem... Olha-me na tua fragilidade exposta, mulher. Espreita-me pelo canto do cinzeiro em que pus todas as minhas esperanças de amanhecer, todos os traços invisuais de credulidade, procura impossível de qualquer alegria breve. Hoje, acredita-me, sou mais do que todos os reis que existem nesta terra de noite. Do que todos os presidentes que se sentam entre cadeirões de veludo. Mais do que a riqueza de todos os ricos juntos. Não te esqueças que o meu sorriso traz a chama da liberdade a acender-se, como fogo do fia de ontem.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

domingo, 1 de fevereiro de 2009

No meu silêncio de escuta e visão

quarto, de Vincent Willem van Gogh

O meu quarto é uma autêntica câmara funerária, excepto no branco que separa o tecto das paredes. Negras se lembrarão como lágrimas a caírem. Vêm de não sei donde e sinto-as como lágrimas em suor. Não são lágrimas de mulher - mas imaginarei como se o fossem! - que escorrem a meio do meu cigarro a incensar-me. Vêm como a vida, que é o apetite da mulher que se quer e, da outra que se rejeita pelo simples facto de nos parecer a mais. Nenhuma mulher é a mais. Procuro o meu cigarro e fumo-o devoradoramente, como se procurasse na noite, um livro para ler... depois do sono. Voou no meio do meu corpo a pedir forma. Olho-me no espelho a pedir imagem. Resguardo-me no silêncio a pedir fala; nas palavras a pedir qualquer silêncio; na forma a pedir segredo; na cama a pedir a paz de um sonho sem trevas; num relógio a pedir as horas que não chegam. Tudo o que quero me sai, mas nada chega, a não ser o silêncio da noite que me passa em habituação. Só que nunca morrerá o poeta nos versos com os seus (de)feitos.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986