terça-feira, 31 de março de 2009

Destino

pintura deFrédéric Bazille
para o Pedro Oom,
.
no seu túmulo de pérolas
e jade e riso cicatrizado
Deixar nos meus olhos a saudade de ficar
e seguir no tempo sem vontade de lá estar.
.
José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

segunda-feira, 30 de março de 2009

A paixão de amar

A origem da Via Lactea, de Tintoretto

Deixaste-me, amor, no dizer que sente
esta minha alma castigada e gasta.
Do tempo, que foi longo e foi presente
bastou que a mão se levantasse casta
.
no esplendor deste desejo inocente.
Mas quê, se tudo o que se anima, basta
por si, em imagem diluída e carente
ante o calor que nos consome e arrasta...
.
A tentação do tempo é modo fugidio
como a maresia que vem e vai
na ondulação do espraiado mar.
.
Eu, que tenho em-mim este ardor frio
nunca me lembro se da minha alma sai
o amor ferido ou a paixão de amar.
.
.
José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas , Aríon, 2000

domingo, 29 de março de 2009

Tempo de regresso

pintura de Eugene Boudin
.
Fica-te o silêncio, as longas noites e o vento
com que sonhaste o regresso do infante adormecido
por entre as vagas que se levantam do mar imenso
ou no seio da floresta, em verde aberto.

Escuta amada, o murmúrio dos ecos
no levantar das folhas de encontro à brisa
ou a visão do sol, que se dilui na claridade da noite
lugar secretíssimo que ninguém descobre
e onde só nós estamos.

Que sei eu dizer-te, que já não saibas ou penses
- mesmo que o meu sorriso se ilumine de sombras -
se só tu decifras a lonjura da terra e o rebordo do mar?

Que sei eu provar-te que não me tivesses dito
senão esta natureza que se criou em-mim
mas que veio de ti, sem que jamais o soubesses?!...


José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

sexta-feira, 27 de março de 2009

José

Melancolia de Paul Serusier


José,
deixa que a tua fraqueza encolha os ombros
que os dias se levantem azuis e acabem em chuva
que a tua alma parta sozinha e viaje sempre
que o teu grito seja o eco no próprio vazio.
Dentro de ti, lá bem no fundo, és tu...
Ninguém te conhece. Os olhos são cegos
as mãos imensas, o frio ímpio, o calor tórrido
e todos têm Pátria e todos têm gente
só o frio que o teu olhar sente
é mais quente
......................que todo o sol no mundo.

José,
vai, descobre por ti mesmo cada erva na planície
cada toca de coelho bravo, todo o ninho de ave
toda a fogueira a arder no finito distante
toda a chuva e todo o vento
todo o enigma do poema - que é o teu!
Quem te pode falar as palavras e os risos
o choro, as emoções, os arrependimentos, os gestos
as miragens, os quadros, o poema?
Todos estão fartos, e cansados, e tu, vives
no mundo que te ignora ou te condena
sem mesmo que ele-dele tenha pena
embandeirado em crena
............................um arco desfeiteado.


José,
escreve o teu poema e deixa que o mundo continue
porque nunca houve um quadro acabado
sem que uma mão o pintasse!
Não tenhas remorso desta vida, deste tempo curto
destas horas fartas de rugas, de mãos cheias de vício
onde o sol se põe - como em todos os lugares-
porque a promissora morte, a morte inesperada e decente
não é ingénua, nem solitária, nem consente
que toda a mente
......................a leve para longe de si.


José,
assim, nunca estarás só ou insatisfeito
nesta lenta
........... e triste
................. caminhada
.................... dos dias...


José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

quarta-feira, 25 de março de 2009

LONGOS BRANCOS BRAÇOS


pintura de Pierre Puvis de Chavannes

Olhei na estranha montanha meu amor
que os dias não passavam iguais
que o reflexo do sol tinha a imagem da água
que a pobreza do mundo compreendia a imagem do céu
que ontem fora um dia longo
que hoje fora um dia sem qualquer dia
que amanhã irá ser um dia curto

Olhei na estranha montanha meu amor
os cavalos empinarem-se de riso
os archotes iluminarem a luz
a água vir dar de beber à sede e ao suor
as árvores baixarem-se na sombra seca
os teus longos brancos braços virem-se estreitar
de encontro ao amanhã que não virá

Olhei na estranha montanha meu amor
o meu gesto a cruzar-se no tronco
dum candeeiro sem lâmpada

Era o largo em que circulava o fumo do meu cigarro


José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

terça-feira, 24 de março de 2009

LUZES... COPOS


Le buveur, de Paul Cezanne

Deixem-me as luzes adormecidas no eco
as garrafas apanhadas no copo
e... serei eu!


José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

segunda-feira, 23 de março de 2009

Como se não bastasse

pintura de Amadeo Modigliani

Como se não bastasse
como se do vento sibilassem nuvens perpétuas
o clamor invadiu o lugar e dei por mim a segredar-te:

Os teus olhos eram azuis e bastavam-me, como o recanto ligeiro
em que abraço os teus ombros, o teu sorriso, a tua boca.
Inunda-me de ti, para que ofereça à terra o lugar perfeito
em que durmo o meu sono (ir)real. Deixa que te traga o silêncio
como me deixas o corpo, em contornos de mágico azul
e louco delírio. Corro-te as pernas com as mãos suadas
com a boca pronta, com o arco a pedir a flor do teu chamamento.
Breve, perfeito. Teu!... E é de ti, oh! amada - ermida do meu silêncio
oráculo do meu olhar, lugar do meu recolhimento, tempo da minha
espera - que ofereço em bênção, o calor do meu corpo
a forma (im)perfeita(?) que me espera e se te oferece.
Que me saibas guardar, como eu a ti, neste final do tempo
lugar da primavera em que crescem todas as estações.

Então, vendo que éramos dois
os deuses calaram e resguardaram-se no seu lugar.

José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

domingo, 22 de março de 2009

Quem correu comigo ao longo do rio e se transformou em mar?


pintura de Claude Lorrain

Quem correu comigo ao longo do rio
e se transformou em mar?

Quem comigo veio na longa sombra descendo as escadas
aquelas longas e incomensuráveis escadas
que seguem do abismo até ao abismo e nos transportam
numa lentidão sôfrega, ao mar em frente
ao mar do silêncio e da calma, da aflição e do instinto
sem que nos possamos deter?

José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

sábado, 21 de março de 2009

Vieste igual, porque vieste tu

pintura de Georges Seurat


Vieste igual, porque vieste tu
estrela de sílabas onde se contempla a boca
infinita face em que o suor escorre e o sorriso se anima
lugar de encontro onde a luz tem som
sinal vindo do claro-escuro onde tudo se destrinça e se esfria
-porque infinito é o eco da alma! -
malha sagrada onde se tece o Império, o Segredo
o velo temporal da Humana criatura, sílaba enunciada do silêncio.
As horas ficaram, porque eram!
Ruas intemporais de tantos passos dados
seguindo os caminhos habituais
os lugares destinados, as cadeiras à espera.

Sobre nós, corria o prédio de três andares
forma onde se esbatia o nosso ímpeto e o fulgor do suor
realidades de noites que se evadiam na ternura das dunas
ali à frente, com o mar em refúgio de ondas
perdida mancha duma palavra constante e vibrátil.


José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

sexta-feira, 20 de março de 2009

ADORMECER

Miranda, de John William Waterhouse


Deixem-me a noite carregada de suspiros
adormecer a lua. A manhã virá
e com ela, o tempo imperfeito.

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

quinta-feira, 19 de março de 2009

de então...até agora

A leitora da sina de Michelangelo da Caravaggio



Como vai longe a minha infância
mascarada do gelo da serra
onde nasci, entre a vertente da Estrela
e o leito do Tejo, ainda fraco.
O crepitar das fagulhas de inverno
e o suor escorredio do verão
o amor e fala suaves de minha mãe
o chorar rabugento e vivo de minha irmã
o saltitar para a rua empoeirada
e a soante tareia por chegar tarde...
Tudo isto, em tempo de férias...

Mais longe, entre o fronteiro e o alto
do casario lisboeta, entre esse mesmo rio
e as pradarias verdes ribatejanas
onde cresci nos primeiros passos duma juventude
quase despreocupada, entre
a voz suave e o amor de minha mãe
as partidas de minha irmã, a tomar forma
o saltar p'ra praceta arranjada
postada mesmo enfrente
e a soante tareia, por chegar tarde...
Tudo isto em tempo de aulas...


Ainda mais longe, entre terra e terra
da vizinha Espanha e do antepassado Marrocos
na plena seiva uivante da minha adolescência
na forma gritante, do quero e posso, do
aqui mando porque me crio e defendo
nas cartas demandantes de aflição material
e da fome no estômago de dias sem comer
no amor e escrita suaves de minha mãe
do eco de desaprovação de minha irmã
do voltar para casa com ar empoeirado
a reprimenda e o sopapo por chegar tarde...
Tudo isto em tempo de aventura...


Quando agora, já mais próximo
entre o mesmo casario e o mesmo rio
com a força dos anos ainda forte
pai duma filha que nasceu chorando
primeira da minha composição-macha
seiva do meu grito breve e fecundo
do eco uivante de todo o meu ser
sem amor e palavras suaves de minha mãe morta
duma irmã que perdi na separação dos bens
com o corpo ainda quente daquela que muito amei
e que nunca mais me daria a reprimenda
o sopapo, a tareia, por chegar tarde...
Tudo isto em tempo de angústia...


Quando ainda mais próximo
entre a partida e o regresso de cada voo
que é o meu trabalho e o meu sustento
senti a força do mundo e amei a mulher
na forma que é, na força que tem
voltei a viver e a sorrir e a chorar!...
Então, sim, então escrevi tudo o que é meu
na forma sincera do todo que me habita.
Escondi também, criando a forma, a expressão
daquilo que não sou e nem serei...
Tudo isto em tempo de meia-felicidade...


Quando e ainda mais próximo
mais uma filha tive nascida na britânica ilha
de carne lusa e carne inglesa
que não chorou nascendo, nem corou gritando...
Quando mais outra veio do mesmo modo
do mesmo corpo, do outro corpo e do mesmo sítio
em dia único de nome de rosa encoberta...
Assim, que reste o tempo de vida
olhando da minha infância a terra serrana
e o coito da grande urbe em movimento
- palco de gente movediça
crepúsculo de deuses e feras
minadas de ideias que saem e não nascem -
assim, que reste o tempo
entre o casario e o rio enquanto viver...
Tudo isto em tempo de rotina...



José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

quarta-feira, 18 de março de 2009

os cafés não podem morrer!

pintura de Jean Béraud


Não, não, os cafés não podem morrer! ...
Não podem ser transformados em bancos
em vazadouros públicos, em memórias desarticuladas
em banquetes de opíparas magias
em casas de curta duração.

Onde estão os meus cafés perdidos
no meio do meu orgulho
da minha fronte de amigo vizinho
criador de palavras e de imagens
de puro amor às ideias?

Não, não, os cafés não podem morrer!...

Não deixem desaparecer as mesas
as bicas, os bagaços, os cinzeiros
a nossa alegria ou tristeza
de falarmos de cadeira para cadeira
em que cada conversa é uma ideia
em que cada ideia é uma geração
em que cada geração é a própria história.

Não, não, os cafés não podem morrer!...

Não pode morrer o que mais sagrado é
para todo aquele que ama a vida
a liberdade, a alegria de se saber
quem é e não é
e que o leva ao mundo maravilhoso
do ar empolado de fumo dos cigarros.

Como poderá morrer um café da avenida
dum parque, duma rua, dum largo
duma praça onde voam pombos, passam pessoas
caminham turistas e correm ladrões
que por serem ligeiros, se espaçam nas massas
das multidões desatentas e confusas?!...

Não, não, os cafés não podem morrer!...

Vivam os cafés abertos, os cafés-concertos
os cafés-botequins, os cafés Martinho (d'Arcada)
os cafés Gelo, os cafés do Chiado
(Brasileira, Benard, Tavares, Grandela)
as ruas a subirem, as ruas a descerem
os olhos falando, as mãos pedindo
a eterna bica e o quente bagaço ...

Vivam quem os inventou!
Nada, nada os poderá transformar
desaparecendo do nosso conforto
do nosso sentir de clepsidras
de graníticos lepidópteros
fantasiantes mancebos surrealistas
fantásticos plagiantes presencistas.

Não, não, os cafés não podem morrer!...

E se o fizerem
acabe-se Lisboa !!!!!!!!!!!!!!!!!

José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

segunda-feira, 16 de março de 2009

há tanta gente... tão pouca gente

cena de Carnaval, de Francisco de Goya

Há tanta gente...
Uma enorme quantidade de gente!
E dessa gente...tão pouca gente.
Que me interessam livros ou poemas
se os deitei fora?
Que me interessam gestos e palavras
se ficaram pendurados à porta?...

Deixem-me bater as palmas
para chamar os sonhos
se é que os sonhos vêm com as palmas.
Deixem-me querer meter
no sorriso do louco
que me apareceu pela janela... a chorar.

Há tanta gente...
E eu, sem vontade de chorar!
Ah! quanta vontade
quanto dizer que sim
chamar os sonhos, sem bater as palmas
meter-me no sorriso do louco
que me apareceu pela janela a chorar.

Há tanta gente...
Uma enorme quantidade de gente!
E dessa gente... tão pouca gente.
Tenho sorrisos atrás de mim
palavras, com sentido, um pouco mais à frente
dedos que se estendem e procuram copos
que o vinho semi enche.

Tenho olhos que me olham, sem me verem
se bem que pensem que o façam.
São olhos que só me olham
e não me sentem!

Ah! quanta vontade
quanto dizer que sim
que venham todos e chamem os sonhos
sem baterem palmas
sem serem livros e gestos
poemas pendurados à porta
e, meter-me no sorriso do homem
que me apareceu, pela frente
a olhar
sem me ver...

José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

sábado, 14 de março de 2009

O desejado

desenho de Hans Holbein the Younger

Nada é mais frágil do que o gesto tornado movimento e as ideias em forma de loucuras. Sempre pensei que nos oceanos como formas de grandes delírios, nos rostos dos homens olhando-os absortos, vagos, tementes, heróicos, em cima das falésias, infalivelmente irresistíveis perante o desconhecido que se encontra para lá do que é minimamente visível. Por isso, na sua loucura fácil - que é forma própria de temeridade - montaram corcéis de madeira e vaguearam-nos, cobrindo as cristas com apagados pedidos e cingidos corações. Entre o escorbuto e o tubarão, a distância era uma vaga mais forte, sinal de deuses escondidos e atentos, risonhos ou sérios, perante a odisseia dos protegidos. Nunca ninguém imaginaria que tal acontecesse e, muito menos, que tal conseguissem. O maior pecado, a maior honra, é o que o faziam com aquela cega fé de quem sabe que alguma coisa se encontrará para lá da distância, infinito horizonte que é curto e vário. O resto, na conquista da terra, é a imagem do encoberto a vacilar constantemente, nas mentes dos que ainda acreditam que o nevoeiro é o único meio de nos fazerem chegar o desejado do Quinto Império.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

sexta-feira, 13 de março de 2009

Há um sonho dentro do teu olhar azul

ghirlandata, de Dante Gabriel Rossetti

Mais do que o horizonte lento e suspenso, há um sonho dentro do teu olhar azul, que sonho múltiplas vezes. Espécie de onda a entrar em qualquer infinito, a varrer-me a lembrança, a possuir-me as mãos, como se todo o azul fosse terra e mar nos teus olhos.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

quinta-feira, 12 de março de 2009

cresce em-mim a cidade

S. Vicente, de Emília Matos e Silva
.
cresce em-mim a cidade, com o sol queimando as arestas
do vento. depois, em uníssono
vagueiam os passos na procura direita da posição
que é aquela que os homens tomam quando se espantam
ao se encontrarem direitos, de se verem em pé
de continuarem vivos.

os homens vivos?!...
os homens com as cabeças levantadas, ainda?!...
os homens com estas personalidades que os tornam
distantes de tudo e de si-mesmos
como sombras resguardadas no canto da primavera?!...

cresce em-mim a cidade deste País tão belo
e de homens que andam sem saberem para onde vão!


José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

quarta-feira, 11 de março de 2009

pelo outro lado da terra

Boreas, de John William Waterhouse

pelas portas azuis que Nokin me abriu, enquanto a fala me chegava pelo outro lado da terra, pude olhar-te no interior dos teus olhos verdes, do teu rosto franco, do teu cabelo negro. as mãos caíam-te suspensas ao longo do corpo e na boca entreaberta havia o manto branco do teu sorriso, alinhado por entre o vale estendido do vermelho dos teus lábios. vieste-me acordar enquanto a manhã durava nos acordes sibilinos da cidade a despertar, com o gaguejar do bocejo nas gargantas de mil almas.
estendeste-me as mãos. acariciaste as minhas entre o delgado suave das tuas e o finíssimo risco amarelo, transparente e próximo veio erguer-se entre o meu sono e o teu acordar.
nada mais havia senão o eco a transportar-se ante o sol que se erguia nessa esplêndida visão que a manhã traz e o momento transporta. ficamos nós, apenas os dois suspensos ante o ruído que se levantava lá fora e o manifesto silêncio que se transportava no nosso quarto. ruídos paralelos duma noite que nos fora leviana. dormiras acordada no meu sono de intensa bebedeira de azul, que Nokin me abriu, enquanto bocejava e me estendia pelo outro lado da terra. tinha partido sem ti e quedara-me imenso no peso das paredes brancamente encobertas pelos quadros que se faziam de figuras suspensas, imensamente grandes enormemente móveis. agora que acordei, vieste-me buscar, transportando-me nessas tuas mãos de suavíssimo movimento.
.
José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

terça-feira, 10 de março de 2009

ter herdado tudo, de nada e de ninguém

Vestigios atávicos depois da chuva, de Salvador Dali


ter herdado tudo
de nada e de ninguém.
luzes do meu universo cheio
onde estão as sombras do meu vazio pleno
as linhas do meu horizonte fácil
as rodas da minha máquina perpétua?

fumo sem cessar os cigarros da minha arteroesclerose ímpia
bebo sem me importar o álcool da minha cirrose sem dentes
fornico sem me caber a sida dos meus testículos inchados
grito a plenos pulmões a dose da minha over-dose inicial
rabujo contra os defeitos das minhas crianças apanhadas na mão
mastigo o doce que o empregado da confeitaria me pôs entre os dentes
pergunto ao Esteves, o da Tabacaria, se já mudou a tabuleta dos anos
imagino o poeta a embebedar-se com as sombras da noite
o pintor a esquizofrenizar-se com as luzes das cores
o aviador suspenso do seu balão estático
o motorista da caranguejola sem cheiro e sem buzinas.

enfrento o mar e pergunto pelo tubarão devorador da última perna
da mulher que enfrentou o marido e se cobriu de lágrimas
do último crime da rua do galeto que se repetirá daqui a dez anos
igualmente, pontualmente, como a luz que acendo sobre a minha cabeça
nessa variação que a terra dá e o tremor faz abanar?!...

ter herdado tudo
de nada e de ninguém
como ser único, solitário e temente.

por hoje basta de vultos e de efemérides
que as linhas do meu horizonte facilitam
e as rodas da minha máquina perpetuam.

José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

segunda-feira, 9 de março de 2009

Como é louca esta velha terra de bravos, virgens



painel esquerdo da Tentação de Santo Antão, de Hieronymus Bosch


Como é louca esta velha terra de bravos, virgens
putas, cobardes, imbecis, para-génios
duendes, pigmeus, velhos, apátridas, traidores
e ninfas vestidas com paramentos de noviças.
Como é louca esta velha terra tresandando a enxofre
e a histórias de pecados e delírios, riquezas e misérias
despovoadas nas barracas de cobre ou erguidas em amoreiras
de super-luxo. Gritam-se os contrastes, mas que fazemos
para os desfazer? Gritamos o belo, mas que fazemos
para que o não seja, para que a luz não se baste à sombra?

José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

domingo, 8 de março de 2009

Infinidade, sempre ...


litografia de M.C.Escher

Há sombras que os dias não apagam
ou risos que as bocas dissimulem
há gestos que são traços vagos
ou fumos que não são fumos de cigarros

Há mar que o mar não esconde
ou árvores cujas sombras não aquecem
há lágrimas nos olhos das imagens
ou imagens nas lágrimas das pessoas

Há rasto na luz dum candeeiro
ou margem num rio a acabar seco
há a infinidade que nunca se aproxima
ou o sempre que não tem nome

Há sombras mar rasto
ou risos árvores margem
há gestos lágrimas infinidade
ou fumos imagens sempre

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danubio, 1983

sábado, 7 de março de 2009

Passo ...

Auto retrato de Anthony van Dyck


Com semblante de mistério
tudo à minha volta gravita
faço cara, passo sério
olho o azul do etéreo
e fujo à voz que me grita.


José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

sexta-feira, 6 de março de 2009

DEIXA QUE DURE O TEMPO

Danae, de Ticiano


No teu olhar há um sonho
que sonhei múltiplas vezes.
No teu olhar, um regaço
em que me acobardei sem sentido.

Deixa que os dias sigam e os ponteiros se movam.
Deixa que dure o tempo.

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

quinta-feira, 5 de março de 2009

Parapeito

pintura de Rene Magritte


No princípio da tarde as nuvens vieram com o sol
dizer adeus aos telhados
Os pombos voaram em círculo
acompanhando as roupas estendidas às janelas
os jardins com crianças dentro
esfarrapando as roupas engomadas

Do alto da minha janela debruçado no parapeito
correspondi ao adeus
cruzei os braços e apontei o infinito
que era a distância que me separava
do resto do mundo

Elas passaram e levaram o meu adeus

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

quarta-feira, 4 de março de 2009

VAMOS SONHAR...DORMINDO

pintura de Degas
à Lynne
Vamos dormir meu amor ...
Vamos sonhar naquelas águas calmas
que descem em cascatas de vida
por aquele desfiladeiro de verde ! ...

Vamos sonhar o nosso sonho
para que ele se abra em flores de lilás
ou em música de Tchaikovsky
para nos amarmos melhor.

Vamos chamar os nossos sonhos de amor
numa tarde de chuva, para que se elevem
e nos deixem pensar no dia
amanhã chegado e sem pressas.

Vamos dormir meu amor
para que eu olhe nos teus olhos
a certeza de que amar, não é só
a forma de te sentir viva e minha.

Vamos sonhar o nosso sonho!


José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983