quarta-feira, 27 de maio de 2009

Os teus trinta anos


pintura de Gustav Klimt


São trinta anos!
É um pedaço de tempo feito
de modo preenchido,
um sorriso, um olhar, jeito
do dia passado-ido...

É a busca na luta, assim
o medo de ser e não ser,
diálogo que não tem fim
daqui estar e doer.

É pedir um pouco mais, sem razão
entre dois acenos de boca,
mascarar com uma só mão
o que na outra está oca.

Ruíram impérios, ideias
mil sinos de sons ufanos.
De noites de luas cheias
ainda só vão trinta anos.

José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha, 1978

sábado, 23 de maio de 2009

Quiseram-me

pintura de Edmund Dulac

Quiseram-me rei, nasci menino
sinal errado daquilo que sou
acento firme daquilo que fui
pedaço de corpo do que serei.

Quiseram-me mago, nasci pedinte
criatura de vida, de mãos de semente
olhar vivo de brilho infeliz
praga viva em existência desfeita.

Quiseram crente, nasci agnóstico
pedido impossível para quem não vê
lugar no futuro para quem crê
incógnita de que existo e de que fico.

Quiseram-me tudo e, afinal sou nada
imagem para esquecer, nome para apagar
tempo perdido sem nada ficar
excepto ossos, para a árvore ramada!...

José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha, 1978

quarta-feira, 20 de maio de 2009

PELA PROCISSÃO

pormenor da descida da cruz, de Fra Angelico


A horrível miséria das chagas
a passar com o andor do santo
pelas horas premiadas.

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

sábado, 16 de maio de 2009

As longas horas de encontro

Jovem Cicero lendo, de Vincenzo Foppa

Longamente... a noite
a fácil luz de todos os delírios
de todos estes medos que guardo desde a infância
essa, que só me soube a trevas e a embuste
a memórias fáceis e desatirculadas
a longas horas de encontro comigo, a sós comigo
com os meus vultos e os meus delírios
a minha imaginação fácil e desempoeirada
acontecida em longas horas de sono vivo e feliz.

Quem me soube ver quando me procurava
nas imensas manhãs de um qualquer dia sem dia?
Quem me soube entender quando me perguntava
de onde - ou de que lado - vinha a luz
quando se distinguia a sombra incontrolável das trevas?
Quem me soube responder a esse passado
que, de tão recente
tinha a visão da minha orfandade
vista por tantos
e pouco, ou nada, entendida por poucos mais ?

Foi brevemente longo o meu desespero
a minha ânsia descontrolada
o lado outro, que não era meu, porque o não tinha
e não sabia a quem pedir!?...

Quem fez de mim o que sou hoje?
Quem se lembrou de me lembrar?


José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

quarta-feira, 13 de maio de 2009

À noite, na cidade


Spike, de Emília Matos e Silva

para o Putchi


A cidade dorme de preguiça. Plena, convencida, farta. Na rua passeiam-se os donos com os seus cães de estimação, enfeite mais para se amar uma casa, do que para mostrar ao vizinho o leão que se tem. Um deles, ladra a bom ladrar. É pequeno, negro, absolutamente vivo, orelhas esticadas sobre o focinho aligeirado, olhar inteligente, gesto rápido. Tem uma mancha branca, lindíssima, à flor do peito. O dono passeia-se com ele na mesma lentidão com que a cidade se espreguiça. Olho-os, e a minha paciência passa à frente com a faiscante certeza de quem tem tempo... e aguarda.


José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Mágico fogo da inocência

Desenho de mãos, de Leonardo da Vinci


Deixei o sonho
-essa língua de fogo que me ata ao ser
ou ao instante que pesamos-
quando acordo com o sorriso
do mágico da cena e privilégio.

E que sonhos deixo passar
por entre os dedos da fortuna
- invios como o éter ou como o arvoredo
no seu imenso lago de aves e vinganças-
sem que me sinta inocente... e confuso?

Não procuro os sonhos
Os sonhos... sonham-me!

José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon. 2000

sexta-feira, 8 de maio de 2009

ESTA MANHÃ QUE NÃO CONSIGO



Alegoria com Vénus e o Tempo, de Giovanni Battista Tiepolo


para o José do Carmo Francisco

Era longa a noite do poema
tão longa como o sibilino eco vagueando
na cálice espuma duma onda vaga.

E eu perdi-me a olhar os dedos
a frágil brancura que sempre me confundiu
ao procurar no infinito
a ponta de todo este mistério

Lá estava a manhã com o resto das horas
o ponteiro pontual que me fere a cabeça
me encosta o sono ao acordar repentino
se enfeita de muitas, múltiplas alegrias
e regresso ao acto consentido e bento.

Só que eu não espero, não posso esperar
não posso aguardar que os dias se repitam
e consigo, me voltem a trazer o mesmo
na secura das lágrimas que não participei.

Estou farto e seco.
Comigo se alonga a noite que diviso
as estrelas penduradas e o rasto do cometa.

Fica só a longa noite do poema
tão longa como o sibilino eco vagueando
pela memória dos homens que ficaram...

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

quinta-feira, 7 de maio de 2009

UMA GOTA DE ÁGUA


Chuva, de Gustave Caillebotte


De ti sempre esperei a serena chuva
aquela frágil gota de água
que me tocava a ponta do nariz.
Talvez que viesse com a luz
ou com a ponta do cigarro
ou com a tua agonia aparente.
Mas de ti sempre esperei
essa pequena gota de água.

Normalmente pensava
que ao meu redor existiam as tuas fantasias
ou pelo menos
entregavas nas minhas mãos
as tuas intenções.
A gota de água era um símbolo
um movimento novo
que juntavas ao teu sorriso
e que fazias acompanhar
do mais belo gesto.

Normalmente era verdade.
Só que no meio do entusiasmo
me vieste com loucas manhãs
com gritos de menina mimada
com falas de falsa donzela
com arrepios próprios do Inverno.
Aí, pedi que me desses de novo
a chuva serena
a frágil gota de água
para que me pudesse saciar.
Então, estendeste as mãos
e pediste que eu me fosse!...


José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

terça-feira, 5 de maio de 2009

PONTO DIFERENCIAL

pintura de Paul Klee

para a Isabel Laginhas


Dói muito mais a dor no nosso corpo
do que dói na dor o corpo nosso!

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

segunda-feira, 4 de maio de 2009

De ti, oh! amada


Vénus adormecida, de Giorgione


De ti, oh! amada,
do murmúrio sonoro da noite, recebi do teu corpo
a imensa paz do teu busto, o prazer determinado do teu olhar
o nervosismo mágico das tuas mãos sôfregas
as palavras dos outros, como ecos de erros aos nossos ouvidos.
Se não havia silêncio, havia, pelo menos
o som da minha luz nos teus olhos.
Nervoso, nervoso de mais, isso bastou a que ali não ficasse.
Despedi-me um tanto apressado
como quem não sabe o que fazer ou por onde começar
quando tudo se precipita ou antecipa à nossa frente.
Apeteceu-me pegar-te pelo braço
e arrancar-te do meio daquele espaço sem realidade
sem qualquer valor ou forma, sem sentido nenhum.
Faria algum entendimento estarmos ali, nós que ali não estávamos?
Porém, e na verdade, que direito me assistia, que direito tinha
se ouvi de-mim (ou no poema da tua voz!)
que a litania era estar sozinho
estar com a minha correria desenfreada e vaga!?...


José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

sábado, 2 de maio de 2009

cabeça de homem, de Fra Angelico

Amore mio, com o se te pudesse explicar, em breves palavras
toda a incoerência, toda esta sombra de princípios, que existe
na consciência dos homens, na mente da Igreja, nas falácias dos
conselheiros nas mãos das grandes fortunas de Itália,
nas mãos do mundo?!...
E eu aqui, aqui preso nas masmorras dum cardeal tirano
que empreendeu perseguir-me pelas estradas e cidades da Europa
e prender-me para seu gozo e prazer, como se fosse um assassino
- antes o fosse! – ter-me à sua disposição para que renegasse
a minha fé e a minha consciência, os bens mais preciosos de que
disponho
faço uso e sigo, para dar-me e aos que me escutam, - esta infinidade!-
consciente de que poderei nela errar, mas que sinto estar certo
quando a explico, a uso, a faço entender e reconhecer
nesse Deus – que me espera -, como unidade infinita
na conciliação dos contrários, como causa imanente do Mundo.

Amore mio, aqui te segredo a minha paixão, a minha última palavra
o sentido da vida e da eternidade, essa conjunção que me torna
presente
e conquistador do eterno, na mente dos homens, na consciência
dos povos
na imensidão do futuro, que sempre foi o que procurei
nesta minha vida, errante, brusca, dilecta, mas apaixonada:
por ti, por mim, por esse Deus – a Sua causa e Destino – omnipotente!

Guarda-me e segreda-me, como se te lembrasses dum velho
que te segredou as últimas palavras e os últimos pensamentos.
Guarda-me, como eu te levarei, no último grito, entre o fogo da
fogueira que me consumirá o corpo, o sangue, o cérebro
mas nunca as ideias que deixei e consegui fazer vingar.

Guarda-me e segreda-me… o teu louvor e a tua lágrima.
.
José Manuel Capêlo, no romance sobre Giordano Bruno « Heróico Fogo da Primavera » de Sabina Ricagni, Zéfiro, 2008

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Ali estávamos nós, no rubro em que os tendões se desgastavam

A escola do amor, de Correggio

Ali estávamos nós, no rubro em que os tendões se desgastavam
em que as surpresas se animavam no canto da pele
em que a luz se limitava no pequeno sinal que saía da aparelhagem
a enunciar distância. Era nas nossas cinturas
que se armadilhavam as mãos, enquanto dormíamos.
Era nos nossos peitos que se surpreendiam as bocas
enquanto respirávamos. Era nos nossos sexos que estremecia a onda
que nos empurrava um contra o outro
aninhados em brilho de gestos, enquanto vivíamos. Sorrindo.
E enquanto tudo isto se enunciava, era a nossa língua
a carne onde habitavam as vésperas das folhagens.


José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000