sábado, 30 de abril de 2011


Querido José Manuel:

Me llamaste a Lisboa la tarde que presenté el pasado año,en el Instituto Cervantes de esta ciudad, la edición bilingüe español-portugués del libro de Casimiro de Brito “En la Vía del Maestro” : querías justificarte (no era necesario) porque tu estado de salud te impedía asistir a dicho acto. En tu nombre me saludó un amigo tuyo. ¡Y pensar que falleciste horas después de que hablásemos por teléfono durante media hora! Este recuerdo me acompaña siempre. ¡Cuántas veces paseqamos, conversamos, comimos y bebimos juntos en Madrid, Zaragoza, Litago! Desbordabas entusiasmo, ilusión y vida por todas partes.
Recordando a Antonio Machado te digo “conmigo vas, mi corazón te lleva”

Publicado por Ángel Guinda, como comentário, associado ao texto "Na morte de José Manuel Capêlo" de 4 de Março 2010, no blog Velocipédica Fundação.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Regresso Tardio



Levaram-me tão cedo de casa de meus pais!...
Ainda mal tinha descoberto o sol
já o mar me puxava para terra estranha
e aves diferentes, que nunca conhecera
voavam sobre mim em gritos estridentes.
O casco do navio seguia, deixando na esteira
ondas de espuma, que se perdiam para lá
- donde tinha vindo-
do difícil do voltar a ter
não fossem os anos a passar, conscientes
da minha inconsciência de razão.

Levaram-me tão cedo de casa de meus pais!...
Quando voltei, também eles não estavam lá...


José Manuel Capêlo, Y si no existieses?/E se tu não existisses?, Edición de Ángel Guinda, Olifante, Saragoça, Espanha, 2003.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Recordações

Recordações

são fotografias mal impressas
são rostos em multidões dispersas
são credos de farsas diversas
são plantas de cores transversas
são mundos de sombras remessas.
.
Recordações
são mãos que se dão
são restos ou côdeas de pão
são fracassos de sangue de irmão
são olhos que nunca verão
são monstros arredios de chão
são tudo e ... nada são!

José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

Se estivesse vivo José Manuel Capêlo faria hoje 65 anos

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Poema de Ângelo Monteiro a José Manuel Capêlo


Como os templários em que a roupa
branca deveria apodrecer com o corpo
preparada apenas para os dardos
dos inimigos da Cruz:
assim nossas almas
depois de chamados a salvar
o Santo ( e eterno) Sepulcro do Senhor
transpassaram as antigas vestes
irmanadas na pureza imanifesta
além da passagem para sempre suspensa
de inclemente fogueira sobre a terra.

Ângelo Monteiro, (Recife, 1 de Março de 1996)

Poema publicado na revista A União, João Pessoa, Pernambuco, em Junho 2010, num artigo de homenagem a José Manuel Capêlo.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

VIDA, DOENÇA E MORTE


pintura de Georgia O'Keeffe


Quando o tempo era tempo
as ramadas quedas remexiam-se nas árvores
nos troncos enchidos, secos e fortes
lançando sementes na seiva p'ra vida
atirando p'ro céu azul, aroma, frescura
na dança diária da própria existência.
.
Quando o tempo era brisa
as ramadas quedas oscilavam nas árvores
nos troncos enchidos, secos e fortes
lançando à deriva sementes cortadas
atirando p'ro céu branco, aroma infeliz
na dança diária da própria morte.
.
Quando o tempo foi vento
as ramadas quedas partiram-se das árvores
dos troncos enchidos, secos e fortes
roubando sementes, frias e fétidas
atiradas ao céu de chumbo
na dança eterna da própria morte.
.
José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha,1978

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Hoy el Mar es Mas Azul Que el Cielo...

poema de José Manuel Capêlo

domingo, 6 de junho de 2010

pintura de Plínio Palhano


A GLÓRIA DA AMIZADE EM CAPÊLO

Ângelo Monteiro

Num mundo cada vez mais instável e inseguro, em que já não se sabe o que é realidade, nada mais prodigioso do que uma amizade que ultrapasse a contagem dos dias e sirva de justificação para a própria existência. Assim foi a amizade para José Manuel Capêlo.
Dono de um caráter generoso — como o dos grandes guerreiros da vida e do pensamento — tanto em seus cuidados quanto em suas expectativas em relação aos amigos, dois dos seus gestos, entre outros, ficaram em minha lembrança. O primeiro quando, preocupado com o meu relativo ostracismo, resolveu me publicar, por sua própria conta, através da Aríon, sua editora em Lisboa, em 2002, sem, em nenhum momento, comentar comigo sobre os custos da edição. O segundo quando voltou, sobre dezenas de quilômetros já rodados em direção a Madri, para resolver, em Lisboa, o problema de visto de um amigo comum que tinha vindo fazer um doutorado em seu país.
Com sua morte — logo no dia seguinte à sua última mensagem eletrônica por mim recebida — se dissolve o vínculo mais vivo que me unia a Portugal e, através dele, à sua grande poesia. Pois Portugal, enquanto país que preza a própria memória, fez de José Manuel Capêlo — o poeta e aventureiro do espírito, como lhe chamei certa vez — o herdeiro simbólico de dois povos: o dos profetas e o dos navegadores.
E a amizade, assim como a poesia, é sobretudo o reino da memória: todas as coisas, uma vez existentes,em ambas permanecem, pois sem Mnemósine as nove musas, e entre elas a da poesia, não conseguiriam se salvar da mais completa mudez. E entre mim e José Manuel Capêlo a poesia era inseparável da amizade, e foi essa correspondência, que delas resultou — permeada pela vastidão do Atlântico — cheia de afinidades, surpresas, variações de humor e idiossincrasias que, como um longo fio de vida e de memória, se rompeu para sempre. E sem palavras me deixou, além das ciladas da vida, ante as ciladas mais insuspeitadas da morte.
Nada mais triste — mais até do que uma relação rompida em vida — do que uma correspondência interrompida pela morte. Passamos então a saber que mais importante do que aquilo que dizemos é aquilo que ficou por dizer. E o que ficou por dizer é, para todos os efeitos, algo que nos ultrapassa. É quando o peso da brevidade de tudo nos alcança com seu máximo poder de aniquilamento.
Atingimos, finalmente, a consolação de intuir que a glória da amizade está na sua singularidade. Um amigo nunca pode ser repetido, portador de uma unicidade não encontrável em mais ninguém. Ninguém, portanto, vai repetir Capêlo na cadência da sua voz carinhosa, em sua gentileza, em seus dons de sedução e em seus rompantes de euforia ou de generosidade, para lá dos momentos de tristeza e de irascibilidade que, por vezes, o acometiam, fazendo com que seus olhos se enchessem da fúria dos mares e sua voz, de belo timbre, se transmudasse em vibrações de tormenta...
Gostava, sobretudo, — ora com ares transfigurados, ora entre gargalhadas e temores, — de partilhar seus melhores sonhos. Pois, além de poeta, com diversas obras editadas, fez-se, também, ensaísta e historiador, como autor de um alentado volume sob o título de Portugal Templário, em que revela uma profunda paixão pela história gloriosa dessa Ordem dissolvida, de maneira cruel e traiçoeira, pelo conluio entre um papa pusilânime, Clemente V, e um rei salafrário que atendia pelo nome de Felipe, o Belo, e reconstituída depois, sob nova roupagem, na Ordem de Cristo, no reinado de Afonso I, em Portugal.
Não por acaso terminou seus dias em Campo Maior, um dos redutos mais famosos da tradição templária no Alentejo, cidade fronteiriça à Espanha. Entre “a substância das coisas e o enredo dos homens” ele pôde dizer num magnífico poema à sua tia-madrinha Isabel Gonçalves Capêlo: “a soma da realidade da vida desta terra que pisamos e guardamos/é a existência: a eterna lembrança feita, na visão da sombra e da luz”.
Poderia, mesmo agora, quando se encontra no além de nós, dizer como Dom Quixote: “O meu repouso é o campo de batalha”. E a sua luta de templário remanescente continua, mas já sob os beijos da eternidade.

Recife, 03 de março de 2010

Artigo escrito pelo professor de Filosofia *Ângelo Monteiro, poeta e ensaísta,

domingo, 21 de março de 2010

Reencontro Inevitável (explicação do nome do blog)


Quando ainda era criança, pouco mais que de colo, tinha dois amigos imaginários, a Bi com quem brincava de dia, e um herói imaginário, uma espécie de príncipe encantado que povoava os meus sonhos e a quem eu chamava de José Manuel.
Eu acredito na reencarnação, na nossa alma imortal que já viveu outras vidas e vai voltar para viver de novo com o fim de se purificar até que um dia se possa juntar à luz que é Deus.
Por volta dos meus oito anos mudei para um colégio onde fui encontrar como colega de classe a irmã do Zé. Não me lembro dele dessa altura apesar de ele frequentar esse mesmo colégio numa classe mais avançada.
Quando comecei a ficar um pouco mais crescida comecei a observar com atenção todos os rapazes chamados José Manuel pois estava convencida que um rapaz com esse nome seria a minha outra metade.
Por volta dos meus quinze anos conheci o Zé melhor quando comecei a ir passar o mês de Setembro na terra do meu avô, na Beira-Baixa. Ele ia também para lá para casa de uma prima minha e dele. Ele era primo por parte da mãe enquanto eu era prima por parte do pai. Foram três ou quatro anos de férias inesquecíveis, maravilhosas em que ele, grande dançarino, era o meu par ideal especialmente a dançar Rock. Eu gostava imenso dele como amigo e havia já da minha parte uma centelha de chama em relação a ele mas para mim ele era o Zé e nunca o associei ao José Manuel dos meus sonhos.
De qualquer modo apesar de se passarem imensos anos em que nos víamos só de longe em longe
num lançamento de um livro seu ou outro acaso qualquer, ele nunca saiu do meu pensamento e do meu coração. Ele vivia no meu pensamento. Como o meu irmão era seu amigo perguntava-lhe o que era feito do Zé Capêlo e assim fui sabendo noticias suas até que o reencontrei em 2008.
Foi curioso o nosso encontro. Eu guardava religiosamente um retrato que eu tinha feito dele em Pedrogão Pequeno quando eu tinha dezasseis anos. Resolvi publicar esse retrato no meu blog "Constante Procura" com um pequeno texto em que falava dele. Ele encontrou por acaso o desenho e telefonou-me. A partir daí passamos a falar ao telefone todos os dias e de tempos a tempos a encontrarmos-nos ora em Lisboa se ele vinha cá ou em Campo Maior onde ele vivia.
Pouco tempo depois do seu primeiro telefonema relacionei com espanto que o meu amigo Zé se chamava José Manuel. Há muitos anos que tinha esquecido o meu herói dos sonhos de infância e a minha procura pelo tal José Manuel. Daí vem o nome do blog que fiz para divulgar a sua obra poética belíssima "Reencontro Inevitável". Penso que o nosso re-encontro estava já escrito nas estrelas. Espero reencontrá-lo de novo quando partir deste mundo. Ele deixou em mim um vazio impossível de preencher, ele levou consigo parte da minha alma.

Emília Matos e Silva - Madressilva

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Fogo

das brumas do tempo, pintura de Emília Matos e Silva


Deitem-me à sombra do loureiro
para que descanse nos sonhos eternos
junto à pedra tumular que ganhei aos celtas
gravada que fizeram a sua suástica
de braços redondos, seculares e idênticos
Deixa que me sepultem entre os dois
Para que me lembrem nas cinzas
Em que me quiseram desfeito.
Lembra-me no silêncio
para que o meu sorriso seja o mesmo
sempre, sempre igual ao que te repeti
ao longo de todos estes dias, estes anos
igual à força duradoura de um amor eterno.

poema de José Manuel Capêlo, em "Heróico Fogo da Primavera", Ed. Zéfiro, 2008

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

RASTO NA SOMBRA

Retrato de José Manuel Capêlo, pintura de Emília Matos e Silva (madressilva)


Há uma luz triangular
debaixo do meu caixão de vida.

Ergue-se como estrela
e
afasta-se como sombra atormentada.

José Manuel Capêlo, em Fala do Homem Sózinho, Ed. Danúbio, 1983

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Faleceu hoje o Poeta, Historiador e Escritor José Manuel Capêlo. A minha homenagem ao homem e ao Poeta.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Falaram-me do tempo como da saudade

pintura de George Braque


Falaram-me do tempo como da saudade.
Falaram-me, como se a chuva fosse irmã do sol; como se a ave fosse irmã da montanha; como se o labirinto fosse irmão do impossível.

Falaram-me de tudo e de mais alguma coisa. Até do céu, como se ele fosse a alegria da terra, vista pelo panorama das árvores. Falaram-me dos homens com os defeitos dos anjos e dos anjos com o sexo dos homens. Falaram-me de tanta coisa, que só de ouvir me cansei. Cansado, como se cansam os santos, os anjos. Os deuses.

Dei comigo a vaguear pelo tempo. O tempo de espera, pois que todo o outro, o que então me sobrava - e era pouco - dera-o para mim, que tempo não tinha, senão a lonjura das ruas, delicadamente dispostas na simetria da cidade. E a cidade rondava com os aspectos. Com os aflitos. Com os medos e os defeitos. As delícias e os enganos. A cidade transparecia com a luz, no calor do dia, na sublimidade da noite. Tornava-se vaga, de mãos cheias, predispostas e adormecidas, recolhida nas vozes que se distinguem gastas ou nas árvores que emudecem vivas.

Há um correr esplêndido por entre as sombras, por entre os sóis. Há um correr fácil por entre as palavras e um olhar vago perante a distância, semblante admirativo em frente de um espelho.
Alinham-se frases. Animam-se gestos. Imaginam-se poses. Colocam-se imagens. Redobram-se atitudes. Só que entre o vago e o vão, há o falso em tudo, se bem que o espelho exista e os homens sejam verdades.

Animo-me a pensar, e a verdade é um fruto que apetece distorcer. Olho-me nos olhos, sem espelho. Imagino e percorro o caminho que se incendeia de aspectos. Fabrico palavras e alinho sons. Esta cidade é bela como nenhuma! E contempla-me.
Deus é grande e o dia é um vazio de todas as nuvens, com todas as sombras. Com Ele, podemos espreitar as nossas ilusões, aquelas que nos trazem fecundos e atentos, sitiados de terra e movimento. O sol é o outro lugar da memória, com a luz no lugar da visão, tendo a distância no lugar do perto. O sol é o sexo que se mantém tapado e não desperta, o início da grande bebedeira que se esfarela pela noite. Lugar onde é fácil encontrar os cretinos e os amantes déspotas, pintalgados de ânsias e cabelos longos, olhares distantes e mãos próximas.
É com o dia, é com o sol, é com esta luz tremendissíma, que a minha paciência pára e me transforma numa espécie de menir - rocha lapidada, visível, magnificamente só -, me baptiza de medos, receios, desvarios, inoportunidades.
O sol com toda a sua cegueira.
Inebriante. Pródiga. Longínqua.
.
José Manuel Capêlo, Quanto desta terra é, Átrio, 1992

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Silêncio Azul

pintura de René Magritte


Neste silêncio de rochas talhadas
nesta maresia de ecos distantes
soam contornos de bocas fechadas
em palavras de amantes.
.
José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Quem vem habitar estes dias de páginas soltas

pintura de Emília Matos e Silva


Quem vem habitar estes dias de páginas soltas
e linhas cruzadas? Estes sóis de não regresso
onde me encontro? Estes lugares de fuga e
eterna pressa?

Apenas, e só tu!

Que poderias partir para as loucuras da terra
fingires-te ausente dentro das estrelas
repatriada por terras de nómadas sedentarizados
fabricante de enormes blagues e sentidos vazios
mas sempre ficarias, inocentemente longe.
Que poderias fugir com os teus braços e as tuas mãos
com o riso branco que te emoldura o rosto
com as tuas pernas esplendidamente delineadas
mas não deixarias de seres-tu, eternamente presa
como se a clepsidra funcionasse ao contrário
ao contrário de tudo, sem que nada fosse igual.

Que loucuras poderíamos nós fazer?
Que segredos a segredar aos outros
que não os que segredávamos a nós mesmos?


José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

domingo, 20 de dezembro de 2009

Se... em realidade

pintura de Salvador Dali

Se eu tivesse tempo de ser tempo
se o tempo tivesse tempo de ser eu
talvez que o tempo fosse mais tempo
e eu tivesse tempo de ser mais eu.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Regresso Tardio


pintura de August Strindberg


Levaram-me tão cedo de casa de meus pais!...
Ainda mal tinha descoberto o sol
já o mar me puxava para terra estranha
e aves diferentes, que nunca conhecera
voavam sobre mim em gritos estridentes.
O casco do navio seguia, deixando na esteira
ondas de espuma, que se perdiam para lá
- donde tinha vindo-
do difícil do voltar a ter
não fossem os anos a passar, conscientes
da minha inconsciência de razão.

Levaram-me tão cedo de casa de meus pais!...
Quando voltei, também eles não estavam lá...


Regresso tárdio

Me arrancaran tan pronto de casa de mis padres!...
Por desgracia había descubierto el sol,
el mar ya me empujaba hacia una tierra extraña,
y aves diversas, que nunca conocí,
volaban sobre mí con gritos estridentes.
El casco del navío avanzaba, dejando en la estela
olas de espuma que desaparecían más allá
-por donde habían venido-
en el difícil recuperar,
no fuesen a pasar los años, conscientes
de mi frágil razón.

Me arrancaron tan pronto de casa de mis padres!...
Cuando volví, tampoco ellos estaban...


José Manuel Capêlo, Y si no existieses?/E se tu não existisses?, Edición de Ángel Guinda, Olifante, Saragoça, Espanha, 2003.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Infinito o mar

pintura de Emília Matos e Silva


Infinito o mar
longínquo
como a nudez
do teu corpo
entre a areia.

José Manuel Capêlo, Margens, Perspectivas & Realidades, 1984

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O eco e a cidade

pintura de Edward Hopper


bastavam-me os teus olhos
e a noite
vinha com o canto dos navios.
serena viria a sombra
e o teu eco
pelos rios.

bastavam-me os teus gestos
e a cidade
corria lado a lado junto a nós.
branda a silhueta
da saudade
na minha voz.

bastavam-me os murmúrios
lentos
e as tuas mãos cingidas ao meu corpo
como cadeias de ventos.

tudo bastava, meu amor.
o sol
preso na distância
traria o eco
o olhar
e a minha ânsia.

Lisboa, 01.Julho.1983

José Manuel Capêlo, Enche-se de eco a cidade, Átrio, 1989.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Oh! dia fulgurante de estrelas e de luzes


pintura de Joseph Mallord William Turner

Oh! dia fulgurante de estrelas e de luzes
de sombras, de vozes e de desejos
que contemplo aninhados e visíveis
nestas folhas brancas
que o papel imprime e seduz. Hoje é o dia material
responsável único por esta demanda de ecos
- vozes surdas e sobrenaturais -
pelas diferenças do espírito, pelos rios da cor
pelos rugidos da forma, pelos altos e baixos
da minha vontade e memória e tempo audaz.

Ninguém me perceba, porque todos me dirão!
- Como o horizonte que se aproxima na linha que fica
aquém da consequência e do modo.

poema de José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Branco e Azul


pintura de Diego Velázquez


A mim, comovem-me as crianças.
Não porque elas sejam tristes
mas porque elas são humanas!

poema de José Manuel Capêlo, Corpo-terra, ed.Trelivro, 1982

terça-feira, 20 de outubro de 2009

CONTIGO II

pintura de Paul Klee

inventar o teu nome pelas paredes
desta rua que me caminha todo o dia
e que não sei se é rua se são sedes
no ébrio de tão frágil alegria

inventar o teu nome quando esqueço
que a rua é toda gente e movimento!...
mas pedir-me, não to peço
já que a honra sustém o sentimento

inventar o teu nome até depois
que a própria terra esfrie e arrefeça
este sentir de um de nós dois
que a rua calou, sem que o pareça

José Manuel Capêlo, Enche-se de eco a cidade, Átrio, 1989.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Contigo I

Pintura de Carlo Criveli


contigo sonho o não sonhar-te
o não te ver só a distância
mais próxima que todo o próximo
a imaginar-te
presa à minha mão de medo e ânsia

contigo sonho o não esquecer-te
o seres sempre a mesma voz
imagem que o fio reproduz
a esbater-se
dentro de ti talvez de nós

José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio 1989

domingo, 11 de outubro de 2009

Canto Maior

pintura de George Braque

para o Fernando Tavares Rodrigues
.
deixa abrir a dor que não magoa
deixa-a abrir, é só semente.
o canto é maior e nunca mente
mais ainda, se o canto for Lisboa.
.
José Manuel Capêlo, Enche-se de eco a cidade, Átrio, 1989.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

MOSAICO VIVO

pintura de Victor Vasarely


para o Luís Osório


Na noite incógnita os rastos do poema…
As luzes a irem e a virem
por entre o turbilhão do cansaço…
O gosto das madrugadas passageiras encontrando forma
no ninho de antenas verdes, em risos de molduras geométricas
pagamentos diários - sem salários fixos –
enquanto o turbilhão do proxeneta procura na almofada
o licor acre duma noite de insónia compensadora.

Como se não bastasse emoldura-se o cigarro
cospe-se para o meio da rua
onde todos passam e ninguém pára
dado que parar
seria que cuspissem em nós-mesmos
os próprios dos próximos.

Em feliz coincidência
(a consciência em espirais e gritos
umas vezes roucos outras alegres)
a caneta que escreve em círculos
ou semi-círculos de enfeite
obra rara em deuses adormecidos nas estantes…
Pegando num deles
pode-se abraçá-lo ou rasgá-lo
com o mesmo destemor com que se o lê…
Poderá importar pouco
dado que o pouco poderá ser o muito
que nada temos. E tudo isso é mau
como o bom seria olharmo-nos de vez
arranjarmos uma lua de mil aspectos
crescermos no azul e espraiarmo-nos no fundo verde…

Poderíamos eventualmente deixar de ir
à confeitaria para comprar bolos
seguir um caminho paralelo
que não nos levasse a qualquer lado
- como à imensidão dum prado
onde não pastassem cabras -
ou a um rio onde não houvessem pedras
formas esguias da nossa perplexidade incomensuravelmente diminuta.

Afirmaríamos por outro lado que as mãos
eram arredondadas, próprias de desenhos rítmicos
os cigarros fracos, próprios de desenhos concêntricos
as vozes arrefecidas, próprias de desenhos iluminados pela noite
os copos cheios, próprios da boémia desaprendida…

Como se nada ficasse
gastaríamos as mãos nas paredes
os cigarros nas bicicleta as vozes nos bordéis
os copos no fígado
- onde tudo seria guardado, como que num cofre
sem chave, sem segredo, sem guarda –
apenas lembrando que lá
o tínhamos posto…

Ainda assim, a barbacã seguiria os contornos
tal como o rio, as margens
a cidade, o tempo
o meu olhar, a distância
a face da menina, o brinquedo por andar
a bicicleta, o fumo das chaminés
a tua presença, o movimento das tuas ancas
as aves, as antenas verdes
as nuvens, um mar fluvial
os remos, as braçadeiras do poder!

Qualquer função seria a minha a tua
como um interruptor de luz
enche a casa de gemidos
ovais empastados solenes
composição duma partitura inacabada
ópera de falsetes e acrobatas
circo de marianos e margaridas…

Como se tudo fosse um mundo único
bastava-nos levantar as mãos
para pedirmos perdão pela nossa inocência
escalavrada e grosseira
painel de tinta arremessada
ombro encolhido por murro directo
boca aberta gritando surdez
cigarro na mão
a atestar o vício.
Todas as aparências tinham características…
Sonâmbulas e ásperas
mal disfarçadas e rudes…
imaginavas-te diferente
por seres exactamente diferente
de todos nós
nós os que nunca parecemos iguais
A tua voz brincava com o ar
explodia em malícia
afogava a tua vivacidade
repreendia quem se lhe opusesse
e habituara-se a dizer…
- Vamos daqui!
Terias a certeza de seres tu quem mandavas
ordenavas brincavas com os nossos olhares
incrédulos mal postos
na tua figura de rainha anã
irrequieta ágil desempoeirada
nas calosidades que te cercavam os nós dos dedos
todos bem iguais à tua inteligência
irrequieta ágil desempoeirada
como os estridentes dentes
que salientavas
no fácil riso que te envolvia.

Bastava que tudo tivesse a proporção
tão necessária para ser luz
aparecesses longínqua e caminhasses directa
ao ponto de encontro
em que nos situávamos.
Não era preciso mais que uma palavra
um gesto
ou um adeus
para olharmos tudo diferentemente.

Rápido como o vento, só o nosso gesto…
Parede encostada à outra parte do quadro
que nos olha ao comermos bolos
ri ao fazermos caras
entristece-se ao ver-nos seguir sem encontro
só porque não está em nós podermos ganhar…
Na incógnita noite os rastos do poema…
Quem os virá buscar, enquanto ainda forem chama
luz, visão do dia, semente e pensamento?
não importa a que distância…
Mas venham!
Tragam as vossas bandejas de qualquer prata
as vossas mãos de qualquer pele
a vossa imagem de qualquer corpo
o vosso sentido de qualquer fim
as vossas ideias de qualquer ilusão…
Mas venham!
Com a eternidade que não vos obriga
a serenidade que não vos realça
a amizade que não vos impõe
a certeza que é própria de todos
a função que é dita de alguns…
Mas venham!
Tragam o espaço e os planos
as vossas cabeças e as vossas bocas
os pincéis e as paletas
a sombra e a claridade
as mesas e as portas
os museus e os bordéis
as mulheres sérias e as que o não são
as vossas filhas e as vossas empregadas.
Tragam as lembranças e o presente
os sãos e os doentes
os mendigos e os fidalgos
o forcado, o cavaleiro, o matador
todos eles com o touro à cintura
já que a arena é bem grande
e todos têm lugar em pé…
Mas venham!
Venham sem cerimónia, sem requintes
naturalmente
como natural é o céu e a voz encoberta
para lá da montanha.
Lembrem-se que todos têm o seu presente e o seu fim…
Que tudo cresce e tudo passa…
Que as noites são dias que se põem
e as manhãs luzes que se despregam…
Lembrem-se que são mortos os que pensamos
mas que são os vivos, os que nos amam…
Que tudo é igual
desde que não se mostre diferente…
Que uma hora não é igual ao tempo
mas que o tempo é uma hora…
Mas venham!
Tragam cânticos negros e odes triunfais
dispersão e mulheres de luto
o antónio-só clepsidra e as sombras e as vozes
cézanne van gogh picasso modigliani dali
almada amadeo bual lud seixas osório
um exercito de não soldados que lutam pela eternidade.
Mas venham!
Tragam nas mãos
rosas, cravos, manjericos, orquídeas
o que quiserem…
Mas venham!
Já que o mundo é mundo e o homem se acaba…
Já que a mão que acende cigarros, também acende fogos
e toca em botões e propulsiona ogivas
e não pára e não pára e não pára…
Parar, é como não saber! Mas o homem sabe
e sobe e desce e avança e recua
e obstina-se e cria
inventa para lá das memórias
para lá do sentido que possui
para lá da volta que dá ao mundo
para lá da montanha que sobe
para lá do mar em que mergulha
para lá de si para lá de tudo…

Tempo preciso, tempo necessário.
Uma flor que espreita empoleirada no muro…
Tanto silencio, estranho silêncio
a lembrar a sepultura em que estás deitada…
Vem-me com a tua serenidade diária
amiga dos meus tempos incompletos
dos meus gestos irreflectidos
suster o meu corpo de bebida entorpecente…
Traz-me a tua a tua imagem involuntária
que todos os dias espreito
todos os dias rezo na minha oração inacabada
como os olhares das filhas que me pedem
ou o beijo da mulher que me envolve…
Vem, vem dizer-me que não me engano
que não me posso enganar
que sou como o lusíada guerreiro
como o lusíada navegante
como o lusíada involuntário de ser lusíada
involuntário de ser alguém, involuntário de ser lido…
Vem até mim, ventre histórico, ventre de onde vim
ventre da minha saliva e das minhas lágrimas
ventre dos meus planos sempre inclinados
das minhas suposições incompletas
das minhas realidades risonhas, mas dispersas
do fumo que fumo sem fumar
do olhar que me deito e que não sinto
de tudo o que me parece triste mas que é real.
Tanto tempo, tanto dia sem realidade alguma
por detrás do meu silêncio
de olhos a lembrarem olhos
livros a lembrarem estátuas
poemas a lembrarem lágrimas
por ti por ele por nós!...

Que o tempo avance e se complete
mas que venha!
Venha como tu como todos a quem espero
e que não sendo muitos serão os bastantes
os verdadeiros os únicos
aqueles que terão a palavra para explicar
porque foi escrita…

Na incógnita noite os restos do poema…
A precisar de ser tempo
a ter de ser espaço…
Desenho quadro casa grande
cavalo selvagem sem domador…
E se for preciso
redigo o que alguém disse:
- Batam em latas!
Toquem no grande concerto abstracto
mas… batam em latas!
Firam o choro se o houveras lágrimas se caírem
a dor que alguém sinta o luto que possam tomar…
Brinquem com a bola pequena, vermelha e branca.
Atirem-na para as nuvens
para que se possa perder…
Foi o meu brinquedo de ouro rasgado
com que brincava todos os dias
com que saltava a janela do rés-do-chão
e jogava na praceta.
Hoje, tem a cor disforme do passado
a lembrar a incógnita noite
a perseguir os rastos do poema!...

José Manuel Capêlo, Odes submersas, Átrio, 1995.


segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Estou farto de possuir florestas


pintura de Georgia O'Keeffe

Sagrado é este luar que à terra desce
este pequeno encanto de muitas nuvens
todo o silêncio que é de espanto
na noite salpicada de várias estrelas.

E eu, só
imensamente só com as palavras
estes ecos que nascem nem sei como
vultos, silhuetas estampadas nas paredes
como contornos apagados pela noite.

Resta-me o espanto da tua face
adormecida nos lençóis de linho
cotovelos apoiados nas paredes
redes envoltas com os teus cabelos
mãos que se erguem do negrume
bafos que acompanho no olhar
sem que o silêncio me diga: Pára!

E sabes que parei? Parei com os livros a abrirem-se
com os livros a fecharem-se
com os livros a nada serem, a não ser
imensas vírgulas no teu silêncio
adormecido pelo álcool de qualquer ascendência
ruas que se fechavam com o teu olhar
passagens de nível a descerem ao grande sacerdote
ao pajem de mãos suadas
pelo grito da guitarra.

E vieram canções embelezadas pelo cheiro
pelo acre-doce de duas rupias emolduradas de oiro
sedentas de mãos que conseguiam ser algumas
as únicas, necessárias para que todo
o ciclo se cumprisse entre mãos.
O resto veio depois, depois das horas
depois do vento
depois de muito suar
nas paredes abertas do teu seio.

Deixa-me agradecer pelo copo de cristal
que me ofereceste no olhar dos anos
no cigarro de múltiplas cicatrizes
no punhal de lânguidas arestas
frisos de sangue marcados pelo meu sangue
como resto que veio depois
de nunca ter passado.
Eu sei que a culpa foi minha
que o medo nasceu do nosso encontro
que o tempo nasceu depois dos filhos e parentes
e que a luz incidiu na minha boca.

Tenho aquela pastilha de agrafos como metafísica.
Vários álbuns encadernados como compêndios
e alguns discos como sequências.
O resto é o empedrado da rua
as pedras a subirem, as mãos a descerem
à procura das conchas que apanho do mar.
As cores... sucedem-se! Tenho pesadelos e confluências.

A floresta desaparece na quantidade de papel que possuo.
Estou farto de possuir florestas.
Que é do meu oxigénio? Que é do meu planeta?
Fui desencantar o meu rosário de vícios
nas pálpebras do teu rosário.
Vieram primas e irmãs, todas feitas de papel
único papel para limpar o cú...mulo
da minha paciência. Cú...bitos
só os ossos e esses emperram por todos os lados.

Quero o Deus que me sossega.
Vem espírito alcoólico até ao meu copo.
O resto são cantigas de meninas e fé.
Várias garrafas se abrem ao meu destino
encharcado de bebedeiras e fé.
Ergam-se os meus punhos e os meus braços.
O resto é o eterno silêncio dos meus lençóis.

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Entrevista Intima!

pintura de Salvador Dali


Está vazia a mente. Nada escreve.
O olhar repoisa num ponto infinito
que se alonga, até escurecer a névoa.
Mas penso?... Sim, penso
que nada imagino,
(como se o imaginar,
fosse o tudo que nos aparece!...)
O infinito não custa.
Custa... é, olhar o infinito!
Infinito tão finito como eu,
ponto dum olhar que se alonga,
imagina, aparece, escreve.
Entrevista-me assim, olhos nos olhos,
mão na caneta, ponta no papel
que marca, que traça, que risca.
Missão dum olhar, que é imaginação,
encanto de um corpo, que é só corpo
mente que escreve e se infinitiza,
no custar honesto que aparece.
Infinito num finito como eu,
em entrevista própria...



José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha, 1978

sábado, 12 de setembro de 2009

Do mundo que é nosso!

pintura de Diego Velázquez


à minha filha Fiona

Gosto de embalar teu sorriso entre meus dedos
acariciar teus cabelos no meu olhar
perguntar se as minhas ideias, são só medos
e se as minhas mãos foram feitas p'ra te amar!?...

Gosto de te levantar, assim, acima
atirar-te de encontro ao ar eterno
ou não fosses parte do meu corpo, minha rima
como outra como tu, sobe, meu olhar terno.

Gosto de buscar nas águas dos rios
entre flores e ramadas que neles caem
como se os teus gritos fossem puros desafios
que nem só do teu corpo crescem ou saem.

Gosto de te ver, de te encontrar onde não estás
olhar a luz, olhar a sombra, um quadro na parede
sermos os dois através de canteiros de lilás
caminhantes num deserto sem ter sede.

Gosto de gritar que és fruto do meu ser,
gosto de dizer que és veia da minha veia,
longo tear dum breve tecer
dum mundo que é nosso e nos rodeia.

José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha, 1978

sábado, 22 de agosto de 2009

O que não merecemos!


pintura de Paris Bordone

Longe, tu e eu,
perdidos nos quilómetros que nos separam
por migalhas de tempo,
no olhar do relógio, que são horas
e que se perdem, a olhar os minutos.

Longe, tu e eu
que não merecemos, porque não esquecemos
que o tempo foi nosso
e que passou sem que déssemos tempo,
ao tempo, para nos vir buscar.

Longe, tu e eu
amantes do belo e de nós
que não nos possuímos há dias
e, que nos são tão longos e brutais
que não os merecemos.

Longe, tu e eu
um do outro!

José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha, 1978

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Tangencial

Os amantes, de Pablo Picasso
A meus pais

Oh! como a noite é mãe dos eternos vazios
alvéolos cheios de nós .....da nossa língua..... do nosso
desejo a confundir-se com as colunas erguidas
no largo enfrente em que adormecem mendigos
poetas ...pintores... compositores do ocaso e do medonho
flagelos da sociedade que não os atina ....suporta
como uma grande fechadura de chave única.
.
Que se rebentem os cadeados ....as portas senhores
que se rebentem as amarras do condicional
da estrutura que aflige e impede e desmoraliza.
Os grandes sopros vieram do pensamento.
Acabe-se.... rebente-se.... estoire-se com o raio da política
que é o arcanjo de fogo de céus fechados.

Amemo-nos com o que temos e somos.
Vem Encamdala..... vamos destruir todos os sonhos
dormir nos laços da noite .....nas camas de ferro
nos prédios de aço e cimento ....nas escadas de madeira
nos buracos das vigias ....nas anteparas dos falsos camarotes
e esqueçamos as vozes vindas do alto pedestal
rígido.... frio ....cómico ....vicioso ....vociferante
plagiante.... anómalo.... irritante ....beato.... sacrílego.

Que tudo se esqueça ....que tudo passe.... que tudo
contorne as tangentes do planeta e os ângulos
e os vícios e as paredes que nos quiseram impor
e o mal que está por detrás do bem
e o que está pela frente de nós-mesmos
e o que há e o que não existe
e o que poderá haver no verde.... no negro ....no vermelho
no espelho dos nossos olhos de mãos abertas
nas costas de todos os que caminham à nossa frente.

Amemo-nos Encamdala e gritemos que o
céu
somos nós!


José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

ETERNIDADE E SENTIDO

Nascimento da terra, de Emília Matos e Silva

Fizeste com os teus lábios um arco grande
no meu peito. As tuas mãos tornearam-no
com a tua boca a procurar o meu gesto
e este a perder-se na noite almofadada dos lençóis.
O mínimo sussurro era o vento que saía de nós
apanhados no grande bloco de cimento armado
ferindo-nos no mais louco enternecer
com os fluxos da luz a saírem do écran
mais sumido tapado pelas gotas de suor
que em cascatas de vida vinham correr
das testas mais suaves deste mundo.

Ah! não, como não se esplêndido era o fumo
seco a entrar pelos nossos olhos pelos
nossos poros pelo vítreo semi-cerrado do
nosso olhar? ! Eras tu e eu..... únicos
debaixo do mundo que adormecia com uma calma
estonteante com a facilidade de quem
não tem nada para dar nada para amar
nada para beliscar a curiosidade e o sentido
da uma e meia da manhã já quando a noite
parecia ser igual parecia ser idêntica
fria vazia despida de corpos e de amor.
Porém, lá estava a luz vermelha o cabo
do telefone a chamada fácil a gritar pela
noite fora a voz longa e cansada o travar
brusco do carro a caminhada em penumbra correria.
Era o abraço e a noite das mil noites sonhadas
há longos anos de muitos anos como se
a eternidade fosse a palavra mais próxima
a mais projectada igualdade nas duas mãos gémeas.

Grita meu amor, pois o sol entrou com o sono
e a luz veio com a madrugada do outro dia
desse dia em que as nuvens passaram por baixo
do castelo de sonhos que fizemos na noite de
todos os sentidos únicos selvagens e possíveis.
Diz que o fim nunca está próximo nem presente
que não está aqui nem ali em parte alguma
e que os nossos pés são passadas de cavalos brancos
a correrem loucamente na areia das infinitas praias
com as ondas a salpicarem-nos não de espuma
mas de vento esse vento batido entre o horizonte
o nosso olhar a nossa língua e os nossos gestos.

Ah! os nossos corpos como brilham!... Chamam-se
estrelas, sabes? Deixa que pegue a tua mão e a
traga aos meus lábios que a sinta e a veja
que a adormeça no meio dos meus cabelos e a solte
à procura de mim de ti da palavra que escrevemos.
Vem, Encamdala meu barro coberto do meu suor
sem nunca te esqueceres que fizeste com
os teus lábios um arco grande no meu peito!


José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Fundo indicado diferentemente


pintura de Vilhelm Hammershoi

Acho que não
que nunca esse tempo foi tempo
de cicatrizes
de borboletas na mão
de berlindes nas algibeiras
de ruas que nunca seguiam
nem de passos que tivessem pressa.

O que também acho
é que bem podia ter sido diferente
distinguível como
um outro caminho
um outro gesto
um outro ar
uma outra forma que pudesse
parecer-se diferente.

Só que
(e a realidade é uma)
eu teria gostado de ter as minhas mãos
em sítios impossíveis
em falas impossíveis
em risos impossíveis
em olhos impossíveis
tão impossíveis como o impossível
de que tudo isso acontecesse.

No fundo
nem seria sonho
porque os sonhos não se sonham assim
(eu também não sei como é que os sonhos se sonham ...)
nem sonhar assim seria sonhar
nem sonhar seria o mais indicado
para a condição de fundo.

Mas o que eu posso dizer de certeza
é que com possíveis e impossíveis
com cicatrizes borboletas berlindes
ruas passos caminhos realidades sonhos
a mão segue sempre a mesma linha
e o tracejado risca-se
de encontro ao descomunal penhasco
que se nos posta à entrada.

Na feia noite de Janeiro
entre o dia ido que foi ontem
e o dia a ser que será amanhã
há o dia de estar que é o de hoje
igual ao de muitos séculos
igual ao de muitas semanas
igual ao muito igual que se desconhece
mas sempre primeiro e único
quando os outros se sucederem.

No fundo até pode ser
que a realidade seja
só e apenas
o parecer-se diferente
como sonho menos indicado
para a condição de fundo.

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

domingo, 26 de julho de 2009

Quem nos substitui?

pormenor do Nascimento de Vénus, de Sandro Botticelli

As outras noites, dispenso-as.

Mas, vem esta noite viver comigo
vamos desfraldar nas estrelas
as nossas mãos abertas
os nossos beijos secos
os nossos pés ressequidos
por caminhadas sem lei,
que tomamos, porque necessitamos.

Quem nos pode substituir?

Já não procuramos bandeiras
nem cargas de cavalaria
nem citaras à bandoleira
nem ondas para construir nuvens
nem ossos para edificar museus.
Temos nuvens num sol encoberto
- sempre o mau tempo -
tempo no mar, tempo no ar, tempo no campo
onde os chacais correm assustando as galinhas
os cães que procuram dormir acordados
os homens que descansam de barriga vazia...

Mas, vem esta noite viver comigo
que pode ser a última
que pode ser nunca
que também pode ser o princípio do nosso encontro
numa guarita vazia, sem cheiro
onde se batem fantasmas
de baionetas caladas fumegando ácidos.

Oh ! vem, vem meus doces olhos
de jardins-de infâncias-de mãos-hábeis
vem gritar a música que se rodopia cá dentro
que nos é comum e única
que adoramos e beijamos
porque ainda a pudemos ouvir.
E, quando acabarmos a noite
sonharemos então que nos tivemos
de mãos dadas, beijos feitos, pés únicos.

Boa noite meu amor. Vamos sonhar...

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

terça-feira, 21 de julho de 2009

Os outros dias

Paisagem com pássaros amarelos, de Paul Klee


Felizes vão os dias de sossego
na vida calma de horas certas...
Nada em mim é visão de cego
antes, claridades de portas abertas.

Corriam livres esses dias marcados;
eram plenas, essas horas sagradas
buscavam os dedos os lugares fechados
sentiam as mãos as formas onduladas.

Como eram bons esses dias de ontem
que não esquecem no tempo de hoje.
Revivam-se, porque todos se sentem
porque nada se perde, nada foge.

Adeus meus dias passados
meus bons tempos de fortuna;
escrevo agora meus breves fados
p'ros lançar, depois, na laguna!

José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha, 1978

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Traz-me...

Criação do Sol, Lua e Planetas, Miguel Angelo


Traz-me o mundo
que eu te darei a terra
não o acaso, o ser imundo
que nele anda, prolifera.

Traz-me flores
pétalas mal acesas
lírios debruados d'amores
e não ondas de incertezas.

Traz-me o tudo
o mar sem fim que aqui é
dá-me o teu corpo nudo
para riscar céus e maré.

Traz-me o meu egoísmo
e o reparo de quando me olhas
porque em mim, vês abismo
e não a flor que desfolhas.

José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha, 1978

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Além do nada só tu!


Danae, de Henri Fantin-Latour

No meio daquele corpo tinha o meu
rasgando-o em beijos de desfolhada;
a hora, não era tempo, não era nada
nem a noite se estendia pelo céu,
nem o sol despontava com a madrugada.

Os lírios lá estavam nos canteiros
bailando na nova luz qu'aparecia;
no meu sono despregado do dia
não via a caminhada dos obreiros
nem o rosto sereno que ao meu lado, dormia.

Oh! quanta luz, quanto desejo
de te ter, mulher!
O teu olhar é um beijo
que o meu corpo só quer.

José Manuel Capelo, Miragem, Editora Montanha, 1978

terça-feira, 7 de julho de 2009

Ser

pintura de Vilhelm Hammershoi


A razão de ser como sou
deve-se ao facto
de não ser como deveria ser!


José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

sábado, 4 de julho de 2009

Rosas nos peitos dos homens

Ansiedade, de Edvard Munch


Ela tinha no rosto as cavas fundas das rosas
e no peito o segredo imenso dos deuses

Passeava-se no espaço perdido de várias dimensões
acompanhando o grito com as mãos..... varrendo
o silêncio pesado de véu de viúva

Da sua boca destaparam-se filhos..... vários
estranhamente doentes estranhamente em silêncio
estranhamente estranhos de si-mesmos
véus encobertos que nunca se destapam
nem descobrem nem fogem nem lutam
a lembrarem as cavas fundas rosas
no peito imenso dos deuses..... estranhamente em silêncio

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

sábado, 27 de junho de 2009

No dia em que …

A jangada da Medusa, de Théodore Géricault


Será que o mar cresce nesse dia?
Tudo vai da lua, da sombra
da montanha, do rio, do luar…
Tudo nasce do nada como eu nasci:
Homem! Mas… que tive para dar?

Será que a sombra me vem cobrir?
Desce comigo a calma do morto
o sangue enegrecido, o corpo a mirrar
o silêncio sempre pronto
para me digerir e olvidar.

José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha, 1978

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Poema do quarto vazio


Bailarina II, de Joan Miro


Quarto vazio, mas não vazio no meu quarto
estou só, sigo desperto, um acordar farto
repulsa de ter nascido, a olhar o nada
nada, que só diz: ninguém de nada.

É mau falarmos sós, dizer nada a ninguém
olhar pausado num espelho nu: de quem?
Visita de tristeza esta, que faço a mim mesmo
sem saber o que dizer, falar solto, grito a esmo.

Pobre capêlo meu, que sustento na cabeça,
professor de orgia, pensamento, peça
e peça a quem pedir, ninguém me ajuda
aplauso do anfitrião de boca muda.

Então noite, minha harpia amiga,
minha brava companheira mendiga,
voz das trevas e horrores e soluços, que dizes?
Triste quadro este, de directrizes.

Ainda ontem quis pintar um quadro...acabado,
um retoque aqui, uma pincelada ao lado,
olho na mira, mira desfeita, cruz axial
e acabei por traçar uma diagonal.

Ficou belo! Digno de um Picasso...
Noite, noite, como me maço!...
Para quem hei-de eu falar
tão triste, tão triste o meu acordar!?...

Julgas-me louco? Não penso, nem calculo,
matemática dum zero ou nulo,
biologia dum homem de quarto
adeus do homem que sou e que parto.
..................................Já não me farto!

José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha, 1978

sábado, 20 de junho de 2009

TU ESTÁS TÃO VELHA !...


Visita, de Jacopo Pontormo


Tu estás velha
tão velha
como os monumentos cicatrizados no meu rosto
velha
como a luz pálida que se apaga no dia
velha
como os dias que morreram sempre iguais
velha
como os quadros que fazíamos em noites por acabar
velha
como as ruas a que nos chegávamos
velha
como todos os abortos que nunca nasceram.
Tu estás velha
tão velha
como no retrato que vi casualmente numa revista
como este tempo que passou e não foi muito
sem te ter e sem te ver...
Velha
tão velha
que já nem te distingo.

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Quem me dera poder voar

pintura de Gustave Courbet


Que falem de mim os gestos, amor
que falem de mim os gestos deste entardecer e da noite
longo silêncio, estranha penumbra a mascarar-se
com a manhã que nasce só.
Era mais belo misturar-me com o sorriso
dessa tua alma cheia de alma
flor única que beijo e transporto nos dedos
que me fizeram à tua imagem
como um pequeno deus transformado em homem.
.
E nada se compara ao teu sorriso
a esse teu sorriso como linha de horizonte
fumo duma ave elíptica a passar pelo arredondado da terra
sulcando o veio do mar
abrindo as fontes das serras e os eixos das plantas
e os olhares dos homens e o geométrico dos telhados
e as grandes quilhas suspensas e o mar a não ter fim
e o fim a não ter mar ou o teu sorriso ou o teu destino.
Quem me dera ser pena ou asa ou algo muito parecido
como um grande manto de nuvens ou a plena claridade
duma madrugada a despontar nos meus olhos.
Ah! quem me dera poder voar no meio dos teus olhos
queimar-me nas chamas que irrompem do seio dos teus lábios
fustigar-me com o suor que sai em cascatas de vida
em flores de lilás de entre os teus dedos
e adormecer no sonho infinito no meio do teu abraço.
.
Não pretendia mais. Tudo o resto poderia nascer igual
com salpicos de todas as formas e olhares
com os gestos idênticos de quem estende as mãos
quem oferece o corpo, quem dá a boca.
As manhãs, que viessem floridas, estivais, outonais
primaveris, frígidas. Não me importava. Nada me importava.
Mas que viesses tu, unicamente tu
com o sorriso nas mãos e a alma nos olhos.
Depois, que aparecesse a Natureza e o seu manto.
.
José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Ode Mística

Golconde, de René Magritte


Aparentemente nada resulta.
O que resulta é não resultarmos de nós-mesmos
os mesmos que resultaram de outros séculos
com a mesma força que resultaram antepassados
linhas directas que deram eixo
às formas que hoje somos.

Paralelamente e com os sinais dos tempos
as formas foram aparecendo
tornando-se seculares
idênticas
sem que o sorriso se alterasse
com a maneira mecânica com que os cigarros
são feitos hoje.
Nada há a dizer quanto ao sexo
que nos deu a mão e outro sexo.
Nada há a dizer quanto à beleza
com que o nosso nascimento foi materializado.
Nada há a dizer quanto à forma
com que as andorinhas criam ninhos
por vésperas da Primavera.

Hoje sou uma badalada rudimentar
das várias horas que se erguem sem destino
um frio achado em mim-próprio
encolhedor de ombros ante a maior miséria que se viu
ante a miséria de encolher os ombros
ante os ombros encolhidos de miséria.
Estou farto de ser idêntico!

Idêntica era a voz que se me baralhava cá dentro
que me emolcionava o sangue
que me fazia vomitar de cobardia
e a que não sabia responder.
Idênticos eram os meus gestos falhos
os meus risos de pobre diabo
a minha identicamente paralela razão de não ser
as buscas contínuas de destino
os amores perdidos no vão duma escada qualquer
ou nos degraus de uma catedral de sinos ocos
observando o sacro prior
humedecendo os virginais fulgores
de uma beatíssima rata de sacristia.

Ironicamente
na casualidade que me confere
sempre passei por mais uma ou outra pessoa
todas iguais
aparentemente
mas com o defeito do senão
de se quererem assemelhar uma às outras.
Sensatamente fugi
e recolhi-me aos bocejos dum pintor de jardim
acarinhando as flores
como se fossem ondas fluviais
pássaros
como se fossem livros a desfolhar
céus
como se fossem marchas fúnebres
ou figuras
como se fossem raios a curvarem-se.


Do alto deste pequeno inferno
deste púlpito sem ornamentos
de frontal escadaria
sempre pude olhar a Deus
este Deus que me existe cá dentro
que sinto
mas que não vejo.
Este Deus que é a minha Fé
razão obscura e temida
como a tela dum filme de horror.
Deste Deus a quem rezo sem rezar
a quem me dirijo sem me dirigir
e a quem peço um menos de súplica.

Sim
este Deus que tudo encobre e tudo destapa
que é a forma do meu sorrir e do meu beijo
que é a luz deste poema
e é a sombra desta ideia.
Este Deus que deu manha aos homens
e celibato aos padres
já que são eles a cumprirem o mandamento
obediente e de castidade.

Sim
eu sempre tive o meu Deus encoberto em mim
sempre O tive com as lágrimas que escorriam verdadeiras
que escorriam e me inundavam as mãos
suadas de as segurar
esse Deus que era o meu segredo
das grandes noites de reflexo
das grandes noites de magia oculta
das grandes noites de sossego e paz.

Mas se vim do homem como ter Deus?
Não seria preferia ter barcos e aviões?
Ou mesmo várias mulheres ou vários homens?
Ou mesmo as ideias umas conta as outras?

Sei lá o que estou para aqui a dizer...
Sei lá porque falo deste mistério
que constantemente me envolve
e me deixa descansado quando nele penso!?...
Sei que quando me deitar deixo de pensar Nele
deixo de me dizer que Ele existe
que Ele não é mais do que o meu Eu a confundir-se
a minha sensação de medo e de culpa
a minha razão porque hoje estou vivo
e amanhã desapareço sem deixar rasto.

Mas se assim for
que o seja. Nada é mais natural
nem mais verdadeiro nem mais evidente.
O mundo
- que não pode ser as mãos de uma criança -
rida como um carnaval de indiferença
mascarado e fugidio
ambíguo e sem conseguir ser irónico.
E por isso as minhas mãos choram suadas
suam de choro
e põem-se em forma imprópria de oração.

Nos cemitérios os restos de meus pais
de meus avós
dos avós de meus avós
da geração antepassada que me ungiu
reclama em voz de sepulcro a minha voz.
E dou-a!
Possivelmente
muito possivelmente será para eles que falo
que enuncio um poema
que desdobro as palavras e firo razões.
Será muito possivelmente que grito
o meu grito de mártir e de diabo
se mártires são os santos
- em que não acredito -
e diabos os vermes que me irão comer.
Mas não.
Para isso há o fogo para que nada resulte
para que tudo desapareça
para que o monte de cinzas seja o lugar
onde os homens escolheram descansar.

No fundo és tu meu ser humano
disfarçado
fundo que nasce e não se completa
olhos de madrugada a cantarem razões
sorrisos de vésperas a anunciarem que as sombras crescem
e se diluem no morno dos nossos sentidos
que passam perdurantes de nós.mesmos
e se embalam no sonho-sexo duma noite por achar.
Assim somos nós
eu e tu
comungantes deste delírio que nos acode
desta presença que não é presença
desta fúria matizada e breve
que são os nossos corpos por se achar.

Mas entre uma noite e a madrugada
há o silêncio desta vez.
Há a maneira dos teus lábios a serem presença
e o encontro das tuas mãos nas minhas.
Por tudo e uma razão
nasceste na manhã em que Deus feriu o mundo
no momento em que o pássaro sentiu o tronco
em que o homem balbuciou o queixume do teu sorriso
em que a forma ganhou a íris do teu sexo.

No fundo
nada mais tinha a dizer.
Era tudo breve
breve
breve como o dissilábico da tua voz
infante
ínfima
única
a reproduzir
que o mundo só acaba nos lençóis.

E o que é o sonho
senão uma noite que se faz?
E o que é a manhã
senão um dia consumado?

Entre ti e mim
agora
há o silêncio que nos busca.
E não será que o buscar
é a forma que achamos própria?
Calemos o silêncio.
Calemos o fulgor que nos arde.
Calemos a própria voz e busquemos a luz
num reflexo de luz frouxa.

Ah! como buscar não perdoa!
E as tuas mãos na tua face
têm o querer duma ave de rapina
o gesto duma acção momentânea
e a busca de te encontrarem comigo
numa cama de pau e esteira.

Fugindo
tenho a nuvem do meu cigarro
diluído
fumegante
atroz sinal de que o tempo se completa
que perdura através do tempo
e que o mesmo tempo
é um sinal que não corresponde.
O tempo é um engano.
O nosso nascimento outro-tanto.
Mas também tenho que dizer que a minha almofada
é tão pesada quanto o meu cansaço
quanto os meus olhos que se abrem pesados
pela manhã e fogem para a água
com medo de secarem.
Por isso desperto e enfrento a luz.
Por isso observo os olhos dos que passam inutilmente
dos que agarram com as mãos as esquinas das ruas
lançam um sorriso e escondem lágrimas.
Pode bem ser que sejam eles os que verdadeiramente amam
os que passam em busca do modo e encontram o tempo perdido
os que por um pedaço de pão pensam ter a barriga cheia
ou que por não terem barriga julgam-se com o corpo fresco.
Pode bem ser que sejam eles os poetas e eu o antipoeta.
Pode bem ser que lhes pertença a rua ou as badaladas das horas.
Pode bem ser que leiam os livros que eu não leio.
Pode bem ser que não seja eu quem eles olham.
No fundo
olhar é distinguir uma aparência que se não distingue
uma imagem que por ser viva também é falsa
um corpo que por lá estar não se percebe.
No fundo talvez lá bem no fundo eu seja quem não julgo ser.
Talvez que eu seja a aparência inaparente
ou uma forma movediça que tem pés e mãos
ou o resultado duma catástrofe de leito.

Certo que a manhã vem brincar com a alma
vem arder onde haja um reflexo
uma mão uma janela um assomo de sombra
um riso infantil duma criança feliz.
Mas será que uma criança é feliz?
Perdoa criança
mas eu não quero chamar-te infeliz
eu não quero que me venhas dizer que a sombra te atingiu
nem que o pássaro caiu do beiral com a minha pedrada.
Não! Eu não quero dizer nada disso
mas somente perguntar-te se és feliz?

Acredito que a felicidade seja algo muito importante
pois mais do que ninguém tu deves merecê-la.
Mas à medida que fores crescendo
encontrarás pelo caminho a outra face do espelho
aquela-mesmo em que olharás e te verás diferente
enganada desiludida baralhada
sem vontade para nunca mais creres em felicidade
que foi feita pelo homem com a mesma argúcia
com que criou outros nomes e outros gestos:
a guerra como o exemplo mais intimo nele.

Mas um dia decidi pintar o mundo.
Estiquei o braço
levantei o dedo polegar
fechei uma das vistas
e tive a impressão de que as silhuetas
não eram tão nítidas quanto o horizonte.
Por isso voltei a repetir os gestos.
Aparentemente a diferença não era nenhuma
a não ser um ligeiro contorno que se adivinhava
numa frente paralela ao risco do horizonte.
Atentei bem com os dois olhos abertos.
Sim, não havia dúvida: era o mar! ...

Mar
explosão branca de carroceis em redor de monstros
sem vizinhança que lhes possam destruir a imagem...
Paralelipipedos de estradas inteiras
de volta ao mundo na razão de vinte e quatro horas...
Sobejos fossilizados que se mantiveram na razão de anos
como imagem directa duma luz preelítica ...
Acordar de muitos sonhos que se distinguiram nos tufões
e se martirizaram nas grandes tragédias de fundo ...
Mar
onde tenho eu o teu espaço?
Essa imensidão sinistra que me embala e me cativa
sabendo eu que és um assassino em potência!?
Forçosamente que terei um destino bem diferente do teu
um acordar com as suas distâncias e paredes
algumas árvores em redor e o silêncio
dos pássaros nas manhãs arejadas e dissipadas nas névoas
que não teimam em ficar...
Mar
de relíquias feitas em dias de longas horas
com o pranto das aves a mergulharem baixo
os penedos a saírem dos promontórios esguios
a minha paciência a não ter limites
e tu cada vez mais distante
mais distante
tão distante que nunca te vi nem senti
nem chorei pela perda das tuas marés.
Mar
hoje tenho um infinito que não desvendo
nem te abro no guardanapo de todos os dias
de todas as noites de todas as mazelas que me fizeste.
Quero-te grande
assim como estás
grande como a grande cordilheira que passa
por debaixo do meu olhar
olhos de luz afogada e mão branca
branca de mim vermelha de tudo
até de sangue que não pára de escorrer.
Mar
não quebres o meu silêncio e não o escondas no teu.
Não brinques com o meu sorriso e não o transportes
na fuga da tua raiva esverdeada.
O que eu quero não o tens.
Amanhece o dia e a luz solta-se de encontro à minha mão
que se estende pela cidade de rua sem almas.
O que eu quero não o encontro em lado nenhum.
Vem com o silêncio e afasta-se com o desconhecido.

Talvez amanhã o sol mude de posição
as mãos se ergam e os gritos estoirem
as ruas se encham e a cidade viva
para que o tempo marque o virar da História.
O resto
virá da Terra em palavras e livros...

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

segunda-feira, 1 de junho de 2009

HÁ CÉU AZUL NUM TRAÇO VERMELHO

pintura de Vincent Willem van Gogh
para a Maria Guinot



Há estradas que circundam o nosso sorriso
mares que circumnevegam os nossos beijos
montanhas que nos gritam como aves
pedras que rolam como mãos
o grande anfiteatro a parecer pequeno
e onde julgamos não caberem os nossos olhos

Só que a estrada é mais comprida que a nossa fala

As velhas persianas ... ao fecharem-se ... estalam
de secas ... gripam dos gonzos ... rodam nos eixos
com o barulho característico de quem se esforça

As mãos abertas buscam os contrafortes das vozes
as silhuetas das faces em ginástica apressada
mímica transfugada para as paredes do acaso
onde se escondem as sobrancelhas cerradas
dos palhaços tristes

Mas vêm as pancadas na madeira aberta

Molham-se os lábios com a saliva da Hora
o cabelo com o barulho do ar
a nossa alma com o nosso medo

Mas do céu azul há sempre um traço vermelho
a gritar o nosso desprezo ... a nossa fúria ... a nossa ânsia
os mares da nossa fé ... de inocentes martirizados
canetas de água-tinta ... a comporem epopeias
enfrente do rochedo enorme ... informe ... sedento

Mas é do meio das nossas mãos que brota o suor

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983