segunda-feira, 15 de junho de 2009

Quem me dera poder voar

pintura de Gustave Courbet


Que falem de mim os gestos, amor
que falem de mim os gestos deste entardecer e da noite
longo silêncio, estranha penumbra a mascarar-se
com a manhã que nasce só.
Era mais belo misturar-me com o sorriso
dessa tua alma cheia de alma
flor única que beijo e transporto nos dedos
que me fizeram à tua imagem
como um pequeno deus transformado em homem.
.
E nada se compara ao teu sorriso
a esse teu sorriso como linha de horizonte
fumo duma ave elíptica a passar pelo arredondado da terra
sulcando o veio do mar
abrindo as fontes das serras e os eixos das plantas
e os olhares dos homens e o geométrico dos telhados
e as grandes quilhas suspensas e o mar a não ter fim
e o fim a não ter mar ou o teu sorriso ou o teu destino.
Quem me dera ser pena ou asa ou algo muito parecido
como um grande manto de nuvens ou a plena claridade
duma madrugada a despontar nos meus olhos.
Ah! quem me dera poder voar no meio dos teus olhos
queimar-me nas chamas que irrompem do seio dos teus lábios
fustigar-me com o suor que sai em cascatas de vida
em flores de lilás de entre os teus dedos
e adormecer no sonho infinito no meio do teu abraço.
.
Não pretendia mais. Tudo o resto poderia nascer igual
com salpicos de todas as formas e olhares
com os gestos idênticos de quem estende as mãos
quem oferece o corpo, quem dá a boca.
As manhãs, que viessem floridas, estivais, outonais
primaveris, frígidas. Não me importava. Nada me importava.
Mas que viesses tu, unicamente tu
com o sorriso nas mãos e a alma nos olhos.
Depois, que aparecesse a Natureza e o seu manto.
.
José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

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