quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Falaram-me do tempo como da saudade

pintura de George Braque


Falaram-me do tempo como da saudade.
Falaram-me, como se a chuva fosse irmã do sol; como se a ave fosse irmã da montanha; como se o labirinto fosse irmão do impossível.

Falaram-me de tudo e de mais alguma coisa. Até do céu, como se ele fosse a alegria da terra, vista pelo panorama das árvores. Falaram-me dos homens com os defeitos dos anjos e dos anjos com o sexo dos homens. Falaram-me de tanta coisa, que só de ouvir me cansei. Cansado, como se cansam os santos, os anjos. Os deuses.

Dei comigo a vaguear pelo tempo. O tempo de espera, pois que todo o outro, o que então me sobrava - e era pouco - dera-o para mim, que tempo não tinha, senão a lonjura das ruas, delicadamente dispostas na simetria da cidade. E a cidade rondava com os aspectos. Com os aflitos. Com os medos e os defeitos. As delícias e os enganos. A cidade transparecia com a luz, no calor do dia, na sublimidade da noite. Tornava-se vaga, de mãos cheias, predispostas e adormecidas, recolhida nas vozes que se distinguem gastas ou nas árvores que emudecem vivas.

Há um correr esplêndido por entre as sombras, por entre os sóis. Há um correr fácil por entre as palavras e um olhar vago perante a distância, semblante admirativo em frente de um espelho.
Alinham-se frases. Animam-se gestos. Imaginam-se poses. Colocam-se imagens. Redobram-se atitudes. Só que entre o vago e o vão, há o falso em tudo, se bem que o espelho exista e os homens sejam verdades.

Animo-me a pensar, e a verdade é um fruto que apetece distorcer. Olho-me nos olhos, sem espelho. Imagino e percorro o caminho que se incendeia de aspectos. Fabrico palavras e alinho sons. Esta cidade é bela como nenhuma! E contempla-me.
Deus é grande e o dia é um vazio de todas as nuvens, com todas as sombras. Com Ele, podemos espreitar as nossas ilusões, aquelas que nos trazem fecundos e atentos, sitiados de terra e movimento. O sol é o outro lugar da memória, com a luz no lugar da visão, tendo a distância no lugar do perto. O sol é o sexo que se mantém tapado e não desperta, o início da grande bebedeira que se esfarela pela noite. Lugar onde é fácil encontrar os cretinos e os amantes déspotas, pintalgados de ânsias e cabelos longos, olhares distantes e mãos próximas.
É com o dia, é com o sol, é com esta luz tremendissíma, que a minha paciência pára e me transforma numa espécie de menir - rocha lapidada, visível, magnificamente só -, me baptiza de medos, receios, desvarios, inoportunidades.
O sol com toda a sua cegueira.
Inebriante. Pródiga. Longínqua.
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José Manuel Capêlo, Quanto desta terra é, Átrio, 1992

1 comentário:

Fresquinha disse...

José Manuel Capêlo faleceu hoje.