segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Estou farto de possuir florestas


pintura de Georgia O'Keeffe

Sagrado é este luar que à terra desce
este pequeno encanto de muitas nuvens
todo o silêncio que é de espanto
na noite salpicada de várias estrelas.

E eu, só
imensamente só com as palavras
estes ecos que nascem nem sei como
vultos, silhuetas estampadas nas paredes
como contornos apagados pela noite.

Resta-me o espanto da tua face
adormecida nos lençóis de linho
cotovelos apoiados nas paredes
redes envoltas com os teus cabelos
mãos que se erguem do negrume
bafos que acompanho no olhar
sem que o silêncio me diga: Pára!

E sabes que parei? Parei com os livros a abrirem-se
com os livros a fecharem-se
com os livros a nada serem, a não ser
imensas vírgulas no teu silêncio
adormecido pelo álcool de qualquer ascendência
ruas que se fechavam com o teu olhar
passagens de nível a descerem ao grande sacerdote
ao pajem de mãos suadas
pelo grito da guitarra.

E vieram canções embelezadas pelo cheiro
pelo acre-doce de duas rupias emolduradas de oiro
sedentas de mãos que conseguiam ser algumas
as únicas, necessárias para que todo
o ciclo se cumprisse entre mãos.
O resto veio depois, depois das horas
depois do vento
depois de muito suar
nas paredes abertas do teu seio.

Deixa-me agradecer pelo copo de cristal
que me ofereceste no olhar dos anos
no cigarro de múltiplas cicatrizes
no punhal de lânguidas arestas
frisos de sangue marcados pelo meu sangue
como resto que veio depois
de nunca ter passado.
Eu sei que a culpa foi minha
que o medo nasceu do nosso encontro
que o tempo nasceu depois dos filhos e parentes
e que a luz incidiu na minha boca.

Tenho aquela pastilha de agrafos como metafísica.
Vários álbuns encadernados como compêndios
e alguns discos como sequências.
O resto é o empedrado da rua
as pedras a subirem, as mãos a descerem
à procura das conchas que apanho do mar.
As cores... sucedem-se! Tenho pesadelos e confluências.

A floresta desaparece na quantidade de papel que possuo.
Estou farto de possuir florestas.
Que é do meu oxigénio? Que é do meu planeta?
Fui desencantar o meu rosário de vícios
nas pálpebras do teu rosário.
Vieram primas e irmãs, todas feitas de papel
único papel para limpar o cú...mulo
da minha paciência. Cú...bitos
só os ossos e esses emperram por todos os lados.

Quero o Deus que me sossega.
Vem espírito alcoólico até ao meu copo.
O resto são cantigas de meninas e fé.
Várias garrafas se abrem ao meu destino
encharcado de bebedeiras e fé.
Ergam-se os meus punhos e os meus braços.
O resto é o eterno silêncio dos meus lençóis.

José Manuel Capêlo, Fala do Homem Sozinho, Editora Danúbio, 1983

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Entrevista Intima!

pintura de Salvador Dali


Está vazia a mente. Nada escreve.
O olhar repoisa num ponto infinito
que se alonga, até escurecer a névoa.
Mas penso?... Sim, penso
que nada imagino,
(como se o imaginar,
fosse o tudo que nos aparece!...)
O infinito não custa.
Custa... é, olhar o infinito!
Infinito tão finito como eu,
ponto dum olhar que se alonga,
imagina, aparece, escreve.
Entrevista-me assim, olhos nos olhos,
mão na caneta, ponta no papel
que marca, que traça, que risca.
Missão dum olhar, que é imaginação,
encanto de um corpo, que é só corpo
mente que escreve e se infinitiza,
no custar honesto que aparece.
Infinito num finito como eu,
em entrevista própria...



José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha, 1978

sábado, 12 de setembro de 2009

Do mundo que é nosso!

pintura de Diego Velázquez


à minha filha Fiona

Gosto de embalar teu sorriso entre meus dedos
acariciar teus cabelos no meu olhar
perguntar se as minhas ideias, são só medos
e se as minhas mãos foram feitas p'ra te amar!?...

Gosto de te levantar, assim, acima
atirar-te de encontro ao ar eterno
ou não fosses parte do meu corpo, minha rima
como outra como tu, sobe, meu olhar terno.

Gosto de buscar nas águas dos rios
entre flores e ramadas que neles caem
como se os teus gritos fossem puros desafios
que nem só do teu corpo crescem ou saem.

Gosto de te ver, de te encontrar onde não estás
olhar a luz, olhar a sombra, um quadro na parede
sermos os dois através de canteiros de lilás
caminhantes num deserto sem ter sede.

Gosto de gritar que és fruto do meu ser,
gosto de dizer que és veia da minha veia,
longo tear dum breve tecer
dum mundo que é nosso e nos rodeia.

José Manuel Capêlo, Miragem, Editora Montanha, 1978