terça-feira, 5 de agosto de 2008

quem inventou a minha infância?

pintura de Paul Klee

a minha mãe

Quem inventou a minha infância?

Um quarto escuro onde a luz entra com o movimento. Libertação, insónia, pesadelo, sonho, quimeras, ódio, vigilância, controle, espanto, pânico!
Nas minhas mãos suadas, uma bola de borracha, pequena, vermelha e branca. Na retransmissão do meu olhar, as esquinas cortadas, o tecto branco, a cadeira onde me sentam para comer as refeições. A criada Augusta, magra, de avental branco, feitio piegas. A vizinha da boina que morava enfrente e me oferecia revistas. Adorava-as. Hoje, meras recordações. Tempo passado, morador de incertezas e realidades, figurante dum dia que não virá. Pois é: o tempo corre, não o apanhamos, mas brincamos com ele.
Uma bola de borracha, pequena, vermelha e branca. Havia um parque, uma praceta, um rés-do-chão. Zás, catrapuz... Um pulo para a rua. Uma corrida. Um haver se te havias. Um jogo de berlinde. Um trepar ao monte. Os sapatos empoeirados. As calças rotas. Uma tareia monumental. A minha mãe.

Quem inventou a minha infância?

Era uma vez... O dormir embalado nos braços e na voz que me amava e que aprendi a amar. O soldado que vai para a guerra... Duas lágrimas, um soluço e também a recordação daquele que a abandonou para sempre, sem culpa de o ter feito. Era um dia de primavera, mal o inverno se apagara. Havia sol e céu azul, aves, cânticos e lagos, regiões verdes, amor, infância e morte. Vermelha. Negra. Amarela. Febre, vómito, esgaire. Havia brancos e negros. Os senhores e os servos. O chicote e o trabalho. O lucro e o roubo. E uma bata branca. Rosas vermelhas para uma senhora de luto. Rosas brancas para dois filhos órfãos. Batuque de amigos pela noite adiante.
Cor? Igual, naqueles olhos de quem pudera sempre ajudar. Com um sorriso. Com a mão pelo ombro. A palavra certa na hora certa. Sinos. Rebate à consciência, às almas distantes. Todas vieram na sua qualidade de saudade. A recordação. Imagem...

Quem inventou a minha infância?

Uma senhora de luto, sempre de negro. Conta-me mãe, conta-me. Eras tu muito pequeno, pequenino... Como se eu tivesse crescido, assim de repente, tanto. Doloroso momento. Gostavas de mel ... E o óleo de fígado de bacalhau, mãe?! De papoilas vermelhas, do campo, das ondas... Sim, eu sei... Não sabia nadar e salvei a minha irmã, gente... Da primavera e do outono. Do inverno, da solidão e da aventura... Pare, mãe, pare. Onde estou? Quisera ter palavras e não tenho. Antes, uma fome terrível, esquisita, diferente. E não é de pão. Os meus olhos, as minhas mãos, o meu corpo. Perdoe mãe, continue! Batia-te todos os dias... Sim mãe, continue! Merecia-lo. Perdia-me. Eras pequeno, muito pequeno, eternamente pequeno, sabes?

Quem inventou a minha infância?

Nas terras africanas de Angola, há muitos, muitos anos, um médico, uma família. Capoeiras e galinhas, coiotes e leões. Savana, selva, interior. Cazombo! Princípio e fim de um sonho. De razões. De luz. Sem qualquer pressentimento. O vómito. Bílis. A causa próxima, derradeira. A certeza. Tudo acabou. E a vida?

Uma senhora triste vestida de negro.
O luto na alma. Dois órfãos, menores, pequenos, muito pequenos, eternamente pequenos...

Quem inventou a minha infância?



José Manuel Capêlo, Odes Submersas, Átrio, 1995

Sem comentários: