domingo, 31 de agosto de 2008

Falaram-me do tempo como da saudade

pintura de Emília Matos e Silva
.
Falaram-me do tempo como da saudade.
Falaram-me, como se a chuva fosse irmã do sol; como se a ave fosse irmã da montanha; como se o labirinto fosse irmão do impossível.

Falaram-me de tudo e de mais alguma coisa. Até do céu, como se ele fosse a alegria da terra, vista pelo panorama das árvores. Falaram-me dos homens com os defeitos dos anjos e dos anjos com o sexo dos homens. Falaram-me de tanta coisa, que só de ouvir me cansei. Cansado, como se cansam os santos, os anjos. Os deuses.

Dei comigo a vaguear pelo tempo. O tempo de espera, pois que todo o outro, o que então me sobrava - e era pouco - dera-o para mim, que tempo não tinha, senão a lonjura das ruas, delicadamente dispostas na simetria da cidade. E a cidade rondava com os aspectos. Com os aflitos. Com os medos e os defeitos. As delícias e os enganos. A cidade transparecia com a luz, no calor do dia, na sublimidade da noite. Tornava-se vaga, de mãos cheias, predispostas e adormecidas, recolhida nas vozes que se distinguem gastas ou nas árvores que emudecem vivas.

Há um correr esplêndido por entre as sombras, por entre os sóis. Há um correr fácil por entre as palavras e um olhar vago perante a distância, semblante admirativo em frente de um espelho.
Alinham-se frases. Animam-se gestos. Imaginam-se poses. Colocam-se imagens. Redobram-se atitudes. Só que entre o vago e o vão, há o falso em tudo, se bem que o espelho exista e os homens sejam verdades.

Animo-me a pensar, e a verdade é um fruto que apetece distorcer. Olho-me nos olhos, sem espelho. Imagino e percorro o caminho que se incendeia de aspectos. Fabrico palavras e alinho sons. Esta cidade é bela como nenhuma! E contempla-me.
Deus é grande e o dia é um vazio de todas as nuvens, com todas as sombras. Com Ele, podemos espreitar as nossas ilusões, aquelas que nos trazem fecundos e atentos, sitiados de terra e movimento. O sol é o outro lugar da memória, com a luz no lugar da visão, tendo a distância no lugar do perto. O sol é o sexo que se mantém tapado e não desperta, o início da grande bebedeira que se esfarela pela noite. Lugar onde é fácil encontrar os cretinos e os amantes déspotas, pintalgados de ânsias e cabelos longos, olhares distantes e mãos próximas.
É com o dia, é com o sol, é com esta luz tremendissíma, que a minha paciência pára e me transforma numa espécie de menir - rocha lapidada, visível, magnificamente só -, me baptiza de medos, receios, desvarios, inoportunidades.
O sol com toda a sua cegueira.
Inebriante. Pródiga. Longínqua.
.
José Manuel Capêlo, Quanto desta terra é, Átrio, 1992

sábado, 30 de agosto de 2008

Princípio III

pintura de Salvador Dali

Percorrer os teus braços
como quem abraça a vida
serenamente
e distinguir a madrugada
pelos carreiros da manhã

a luz virá
unicamente
com a mesma cor.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Quantas noites tem o silêncio

pintura de John Constable


para a Lynne

Quantas noites tem o silêncio?
Quantos dias tem o passado?
Oh, meu amor do norte
tudo é vago e impreciso
nesta colmeia que sustento nos dedos
e que vejo fugir
como o sol foge às nuvens.

Quantas noites tem o silêncio?
Quantas horas tem o teu riso?
Oh, meu amor do norte
quanto silêncio pesa e me abre
se as árvores que lá fora espreitam
fossem testemunhas do princípio e fim
dos meus passeios de todos os dias.
.
Quantas noites tem o silêncio?
Quantas mãos tem o teu rosto?
Oh, meu amor do norte
se a distância fosse o mar
e o próximo a tua mão
ia contigo à procura do vento
deixando o poema à terra e ao sol.
.
Quantas noites tem o silêncio?
Oh, meu amor do norte
nada na terra tem a forma do teu olhar
nem a simplicidade do teu sorriso.
.
José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

todos estes dias de igual dia

pintura - Luar - de Caspar David Friedrich


digo bom dia à noite
e avanço!

a noite é-me sempre eterna
mesmo nos braços em que descanso
todos estes dias de igual dia
fáceis de tristeza ou alegria
de encanto ou melancolia
em hora frágil e serena.

digo bom dia à noite
e avanço!

José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Meu dia de luz do dia

pintura de Gustave Moreau, Édipo e a Esfinge
.
Meu dia de ritmo lento
tão igual ao outro dia
meu dia que vem e vai
que é luz e não é dia
tão lento por mim se esvai
que o próprio lento se arrepia
meu dia de luz do dia
vai lento e nunca vai!...
.
José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Não te estou, não te invento, nem te procuro

pintura de René Magritte


Não te estou, não te invento, nem te procuro
porque o tempo da água escorreu rápido para a margem
essa terra breve onde se escondem os fáceis gestos
os lugares que se marcaram com mãos de outras vitórias
noites consumadas em cama de feno e suor.


José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

domingo, 24 de agosto de 2008

No cume da Guardunha

pintura de Turner, Raby Castle
para o Paulo Loução

Viver é criar. Subir é ver.
Eu que não criei montanhas, nem aves, nem espaços
vejo-me criá-los ao erguer os braços no ponto mais alto da serra
na Senhora da Penha, em pleno maciço da Guardunha
como Godofredo, o conquistador do Templo, o fez
- quando a cidade sagrada lhe foi entregue
depois de acometida, tomada e saqueada -
brandidas as audácias e a loucura da posse.
Deixando o caminho mais largo, com os meus amigos, começo a subida
do morro firme e vário, como que escondido pela serra maior,
por entre caminhos antigos e pedras de leitura
que nos descobrem os vestígios dos passos, do arquitecto lúcido
que por ali andara há alguns séculos e escolhera aquela região
para deixar nome em rio, terras, ameias e memórias.
.
Sinto-me na terra, que é bela e estranha
- gerida por uma força que não se vê, mas sente -
a cada palmo de rocha trepada. Subo para ver
a íngreme escadaria de pedra, própria de deuses
com sinais deles, até ao cume.
Recuperado o fôlego perdido, preso à grande pedra em que me firmo
ergo os braços de punhos cerrados e grito como o vento:
- Sou o senhor do mundo!... O senhor do mundo!...

Lá em baixo, passam em movimento as viaturas rápidas
que levam o olhar à outra margem da terra
sem se aperceberem que o lugar do culto lhes é tão próximo.
No alto, em que conquistei a terra do mistério subindo a pedra
olho Castelo Novo a meus pés e Monsanto à distância
abraçando firme o arquitecto da paisagem
que me deixara ver, no sorriso, a idade do tempo!...
.
José Manuel Capêlo, Portugal Terra de Mistérios, Ésquilo, 2001

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Repara como tudo é leve

pintura de Fragonard


Repara como tudo é leve
como tudo flui pelo espaço
que nos submerge. Somente o teu sorriso
é branco e começado, como as montanhas
que vemos perto e se sucedem.
Luminoso e marcado, é o lugar
onde se muda o que nos resta
claridade que uma manhã segura
e a fixação imagina.
Repara como os homens têm lágrimas e reflexos.
Como neles, tudo é pleno e se transmuda
porque suspensas são as cores
e os rostos e as claridades
arco-íris que as nuvens não fixam.
Não me perguntes se sou
porque se aqui estou, mais longe estarei
- todos estes dias de iguais dias-
nos dias que me seguram o corpo
me esfregam os olhos fechados
me recordam manhãs que correm breves.
Ainda, a grande alegria que se suspende
das máscaras de imensa poeira repetida.



José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Hoje o mar é mais azul do que o céu!

pintura de Gustave Courbet


Olha amor!
Hoje o mar é mais azul do que o céu!


Não sei porquê, mas precisava de to dizer
porque, sentindo-me cansado, sei perfeitamente
que a minha fadiga não vem da terra, mas desse lugar azul
desse longo caminho amplo, que me dá que pensar.


Por outro lado, deixei à meia-noite
o meu silêncio no lado de cá da porta.
Quando bateste, o que ouviste?
Não foi um turbilhão de aspectos
com as vozes do meu próprio eco?


Sim amor, podes ter a certeza.
Hoje o mar é mais azul que o céu!



José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Ode natural ou da heroicidade

pintura - Cervantes de Salvador Dali

As vozes lapidares que se erguem!...
Estas são as sementes que me maçam
e eu não tenho nada a haver com a terra.
Se quiserem, destruam os prédios, fechem as lojas
rebentem com o dinheiro, acabem com o rio
estrangulem as árvores, garrotem os arcos
estoirem com o movimento
se é isso que está certo.
.
Quem está mal, sou eu, e não me mudo!
Isso é o que vocês queriam
senhores dos anfiteatros e das arenas
dos palcos dos mundo
dos camarotes das praças e dos estádios
dos teatros, dos cinemas e dos coliseus
mas isso, não vos dou.
.
Quero estoirar sozinho, mas estoirar bem.
Engolir o sangue que meu deu minha mãe
o sexo que me deu meu pai
as palavras que dei a mim mesmo
as que dei aos outros
as que não dei a ninguém.
.
Tenho correntes de ouro e anéis de marfim
livros sagrados e copos de cristal
mesas de ébano e cadeirões de veludo
janelas à minha frente e ruas sob mim
dinheiro de papel e dinheiro de latão
o sofrimento dum cego que toca a concertina
a tristeza dum pobre que toca ao coração
o choro de um vadio que se enrosca na noite
o silêncio pesado no véu duma viúva
a agonia lenta de dois filhos órfãos.
Quem está mal, sou eu, e não me mudo!
Quero estoirar sozinho, mas estoirar bem.


José Manuel Capêlo, corpo-terra, Trelivro, 1982

domingo, 17 de agosto de 2008

Pascoal de Melo, a rua que dá para Arroios

pintura de Carlos Botelho

Todas estas manhãs vêm com as mesmas sombras e segredos
com as mesmas árvores e fachadas, com as mesmas janelas
os mesmos vasos de plantas caindo dos parapeitos
o assomar natural dos moradores enfrente, a verem
o que é que vai por essa rua de habituação.
A Pascoal de Melo é uma rua habituada por dois sentidos:
o que desce no sentido do largo de Dona Estefânia
e o que sobe para a avenida Almirante Reis
ou o vice-versa, que é tão igual quanto o anterior
pois tudo lá está, até o jardim Constantino
cada vez menos a ser jardim e cada vez mais a ser Constantino.
Além de habituada é habitada, pelo menos por mim
que já lá moro há mais que quatro mãos e meia
e que pelos vistos teimarei em morar. Não porque desgoste
mas porque nela estou habitado. Em todas as manhãs
todas as tardes, em todas as sombras e segredos
com o olhar dos vizinhos enfrente a assomarem
naturalmente para a rua de dois sentidos: o que desce
e o que sobe na minha paciência de jardim Constantino.

Assim, neste trautear de passadas que passam sem se cruzarem
assoma pelos cantos da boca, um cigarro que uso
enxovalhado e gasto, naturalmente, mas feliz e contente
por me possuir diariamente os lábios, que é o normal
de quem me pretende de tempos a tempos.
Fixo nele o meu instinto de cobaia treinada
repito acelerado os cânticos que o velho bagaço me ensinou
e corro para a minha rua de mãos abertas ou cerradas
a fustigar o vento que por mim se cruza. Lá para trás
os grilos cantam nas sobrancelhas dos diáconos
com as mãos colocadas, uma, na falda da sotaina
a outra, na trabalhada madeira de múltiplos e confusos segredos
olhos no pequeno vitral que desponta do sacro ofício
e toda a mente a embebedar-se do espanto dos crentes.

Para já, resta-me a rua que dá para Arroios
para os passos do nupcial Camilo, transportando Ana
placidamente de encontro à mão secreta do encontro;
de Gomes Leal, remendando o quarto de um amigo
por uma noite ou muitos dias (conforme a fase da Lua);
de Fernando Pessoa, de casa de uma tia que tinha por dever
ir passar férias esotéricas à Suíça ou aos Alpes
não se esquecendo de avisar o sobrinho de que lhe
continuasse a enviar cartas de pressagiante ocultismo;
ou, tão pouco, de Raul de Carvalho, em descidas
e subidas, com a artereosclerose a enegrecer-lhe as veias
construindo em Elsinore, o canto oculto da mulher.

Da minha rua, saem fascinados os ecos da noite.
Os caminhos são idênticos aos caminhos passageiros
aos múltiplos cigarros acesos, às chamas soerguidas
nos contornos dos alabastros de casas palacianas.
Restam poucas, nas apagadas chaminés de fumo para dentro.
Espreito da minha pequena janela debruçada sobre as árvores
a minha rua de dois sentidos: o que desce e o que sobe
na minha eterna paciência de jardim Constantino
virado, sempre, na mesma posição; isto é:
e costas para o mundo dos pardais que é a parte da frente
de todos os homens que caminham como eu. Aparentemente!.



José Manuel Capêlo, Odes Submersas, Átrio, 1995

sábado, 16 de agosto de 2008

Oh! dia fulgurante de estrelas e de luzes

pintura de Sir John Everett Millais


Oh! dia fulgurante de estrelas e de luzes
de sombras, de vozes e de desejos
que contemplo aninhados e visíveis
nestas folhas brancas
que o papel imprime e seduz. Hoje é o dia material
responsável único por esta demanda de ecos
- vozes surdas e sobrenaturais -
pelas diferenças do espírito, pelos rios da cor
pelos rugidos da forma, pelos altos e baixos
da minha vontade e memória e tempo audaz.


Ninguém me perceba, porque todos me dirão!
- Como o horizonte que se aproxima na linha que fica
aquém da consequência e do modo.


José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Hei-de partir para a Nova Índia com as mãos que tenho no peito

fotografia do Taj Mahal


Hei-de partir para a Nova Índia com as mãos que tenho no peito. Hei-de partir com essas mãos que escrevem. Não com a antiga saudade, mas com uma outra de um tempo por vir. Creiamos: não há lógica no tempo de hoje, sem o concreto do tempo de amanhã, porque nada pode acabar sem haver começado.
E se lermos em redor, veremos o sinal luminoso e fluente, quanto as variadíssimas luzes que se destacam para lá das montanhas próximas e secretas.





José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

terça-feira, 12 de agosto de 2008

tudo pesa como tudo passa

pintura- memória persistente - Salvador Dali


Cai breve a frágil melancolia dos gestos pelas ruas violentas e soltas. ante a certeza, um olhar, e a taciturna tarefa de um cão que empreende um vaivém milimétrico, na tarefa de ir procurar comida e farejar o vento. nada do que resta é igual, nem sofre a aparência de uma face de olhar transtornado, com nuvens soltas a limparem o céu, mulheres sentadas procurando pontos irregulares, homens de olhar parado e cabelos brancos alinhados, casas ordenadas nas silhuetas da grande cidade, escadas que sobem nos passos que descem.
tudo é natural, tudo é silêncio. tudo pesa como tudo passa. labirintos são os olhos que se mortificam e as plantas que teimam em crescer no arredondado dos jardins, os bancos de madeira roídos pelo tempo, pelo sentar dos anos, pela fuga dos homens por entre a velhice. seguindo todas estas razões, o silêncio, que é toda a razão e nenhuma.



José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

domingo, 10 de agosto de 2008

Deste fim ou começo da terra

pintura de Hokusai, Grande onda

Deste fim ou começo da terra
.
oh! amada
oh! minha Ilha-Verde da paixão
.
surges-me esplêndida, demorada
com a forma e destino duma ave.
.
José Manuel Capêlo, A Noite das Lendas, Aríon, 2000

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

contigo I

pintura "Sonho" de Marc Chagal


contigo sonho o não sonhar-te
o não te ver só a distância
mais próxima que todo o próximo
a imaginar-te
presa à minha mão de medo e ânsia

contigo sonho o não esquecer-te
o seres sempre a mesma voz
imagem que o fio reproduz
a esbater-se
dentro de ti talvez de nós

José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio 1989

terça-feira, 5 de agosto de 2008

quem inventou a minha infância?

pintura de Paul Klee

a minha mãe

Quem inventou a minha infância?

Um quarto escuro onde a luz entra com o movimento. Libertação, insónia, pesadelo, sonho, quimeras, ódio, vigilância, controle, espanto, pânico!
Nas minhas mãos suadas, uma bola de borracha, pequena, vermelha e branca. Na retransmissão do meu olhar, as esquinas cortadas, o tecto branco, a cadeira onde me sentam para comer as refeições. A criada Augusta, magra, de avental branco, feitio piegas. A vizinha da boina que morava enfrente e me oferecia revistas. Adorava-as. Hoje, meras recordações. Tempo passado, morador de incertezas e realidades, figurante dum dia que não virá. Pois é: o tempo corre, não o apanhamos, mas brincamos com ele.
Uma bola de borracha, pequena, vermelha e branca. Havia um parque, uma praceta, um rés-do-chão. Zás, catrapuz... Um pulo para a rua. Uma corrida. Um haver se te havias. Um jogo de berlinde. Um trepar ao monte. Os sapatos empoeirados. As calças rotas. Uma tareia monumental. A minha mãe.

Quem inventou a minha infância?

Era uma vez... O dormir embalado nos braços e na voz que me amava e que aprendi a amar. O soldado que vai para a guerra... Duas lágrimas, um soluço e também a recordação daquele que a abandonou para sempre, sem culpa de o ter feito. Era um dia de primavera, mal o inverno se apagara. Havia sol e céu azul, aves, cânticos e lagos, regiões verdes, amor, infância e morte. Vermelha. Negra. Amarela. Febre, vómito, esgaire. Havia brancos e negros. Os senhores e os servos. O chicote e o trabalho. O lucro e o roubo. E uma bata branca. Rosas vermelhas para uma senhora de luto. Rosas brancas para dois filhos órfãos. Batuque de amigos pela noite adiante.
Cor? Igual, naqueles olhos de quem pudera sempre ajudar. Com um sorriso. Com a mão pelo ombro. A palavra certa na hora certa. Sinos. Rebate à consciência, às almas distantes. Todas vieram na sua qualidade de saudade. A recordação. Imagem...

Quem inventou a minha infância?

Uma senhora de luto, sempre de negro. Conta-me mãe, conta-me. Eras tu muito pequeno, pequenino... Como se eu tivesse crescido, assim de repente, tanto. Doloroso momento. Gostavas de mel ... E o óleo de fígado de bacalhau, mãe?! De papoilas vermelhas, do campo, das ondas... Sim, eu sei... Não sabia nadar e salvei a minha irmã, gente... Da primavera e do outono. Do inverno, da solidão e da aventura... Pare, mãe, pare. Onde estou? Quisera ter palavras e não tenho. Antes, uma fome terrível, esquisita, diferente. E não é de pão. Os meus olhos, as minhas mãos, o meu corpo. Perdoe mãe, continue! Batia-te todos os dias... Sim mãe, continue! Merecia-lo. Perdia-me. Eras pequeno, muito pequeno, eternamente pequeno, sabes?

Quem inventou a minha infância?

Nas terras africanas de Angola, há muitos, muitos anos, um médico, uma família. Capoeiras e galinhas, coiotes e leões. Savana, selva, interior. Cazombo! Princípio e fim de um sonho. De razões. De luz. Sem qualquer pressentimento. O vómito. Bílis. A causa próxima, derradeira. A certeza. Tudo acabou. E a vida?

Uma senhora triste vestida de negro.
O luto na alma. Dois órfãos, menores, pequenos, muito pequenos, eternamente pequenos...

Quem inventou a minha infância?



José Manuel Capêlo, Odes Submersas, Átrio, 1995

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Ode submersa

pintura de Almada Negreiros

para o António Barahona da Fonseca


Cedo, beijo o crepúsculo nas manhãs das minhas frias mãos.
Se crio imagens, elas fogem-me num repente
como se o sono estivesse pronto a despertar
e a luz que nascesse, acompanhasse a madrugada
nos raios finos e amancebados de tons de oiro.
Podia lá ser o crepúsculo que me agitava!? Podia lá ser!
Paródias, tinha-as tido noite fora desde que encontrara
o plúmbeo vício de me cicatrizar nas esquinas.
Os agiotas e os efebos esvaziavam-me os olhos
procurando na rua, o difícil do meu caminho
entornado de suores, frios encantos a lembrarem
uma mala aberta de recordações por rever
com o fantasma do grande prédio por detrás
que podia ser a frente de qualquer defeito.
Mas não. Era a parte detrás.

Olha o meu amigo Campos... Vai cedo à vida.
Passa no seu ar nervoso de engenheiro naval.
Acena-me um adeus - já que me reconhecera -
e afasta-se no seu passo ligeiro, habitual, de muitas preocupações.
Coitado de mim que olho o engenheiro Campos
cuja manhã, para ele, começou triunfal na Ode Marítima
ode submersa de contratempos e barcos que se agitam
comissários de bordo e amarras de corda
que não sendo manuelinas, são de ancoradouro
repouso de guerreiros na longa travessia do Suez
ainda mais e constante, por não passar pelo Egipto.

Não, não posso ser eu.
Tenho que me endividar pelas esquinas curtas do meu bairro
pois que as outras, estão demasiado afastadas
ou demasiado arredondadas pelos que lá passam.
Mas as do meu bairro conheço-as todas.
Ah! até mesmo os cães, como aquele rafeiro de cor amarelada
que vive por baixo do meu prédio à altura dum ladrar.
E não há ninguém a olhar por eles, nem por mim
dado que não preciso que me olhem como se olham os cães.
Aljubarrota nunca foi o meu quadrado
nem Aljube a minha cela. Tive-os diferentes
de diferentíssimas maneiras, em diferentes ocasiões
e posso gritar que nunca matei
nunca feri nos olhos, os que passavam sob o parapeito da minha observação.

Compêndios de heróis formei-os em criança
como qualquer criança o faz, a criar heróis
ante a luz morna do amanhecer inseguro
frágil trajecto da varanda dum rés-do-chão em salto para a praceta
que era o meu acordar de brincadeiras
o encontrar do dia todo e da noite que me fazia voltar para casa.
Hoje, que tenho outros vícios
não tenho Aljubarrotas ou Aljubes.
Tenho cotos de velas a olharem-me desafiantes
como combatentes de varas largas.

Ouve Caeiro. Que é feito do rebanho que nunca guardaste?
Tu que és bucólico, atormentado e doente, mestre de discípulos
tão geniais como o próprio mestre?
Onde encontraste essa tendência de criares em ti
um outro mundo, oculto de todos, até do teu Deus natural?
Ou não será ele a quem gritas?...
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol
Para que lhe chamo Deus? .Não será?
Tens a fragilidade e a doença duma manhã morna e cinzenta de Fevereiro

a consciência da cor em que a pedra tem parentesco
o gosto de que a pedra seja pedra e não seja estorvo
a admiração de descobrires a realidade das coisas em todos os dias
o de saberes que te chamam poeta materialista
aparte de tu-mesmo saberes que não és poeta! Vês?...
E que outra coisa não é um poeta senão aquele que vê?
Claro que tens razão. Não és poeta. És um supra-poeta da Natureza
fugindo da vulgaridade que encontras nos teus passeios
de sala para sala, livro para livro, pastor para pastor.
A realidade não precisa de ti. Mas toda a realidade precisa de ti, Caeiro!

E tu Reis, presumido e epiléptico, pai dos meus dias
que nunca se vêem porque nunca o são?
Será que Lídia, involuntariamente, te deixou?
Deixa meu caro, porque .o ritmo antigo que há em pés descalços
esse ritmo das ninfas repetido
levaste-o para o Brasil das mil e uma tonalidades de luz
passeando-o nas ruas do desaconchego de nuvens baixas
ruidosas e curvas, atravessadas e ilusórias.
Mas não faz mal, Reis. Surgiste no arquétipo de cirurgião
de mãos remendadas e nervosas, de óculos caindo sobre o nariz
bocas sobre o queixo, mãos sobre o vazio das ancas
efémero e desajeitado, rugindo na tua filosofia
da qual Dirceu de outra Marília.
Mas se te sinto em todas as noites antes das badaladas da meia-noite
é porque comigo dorme Neera, longe dos teus lábios
trespasse do tempo que este próprio me ofereceu
sem que tivesses a fortuna de a possuir.
Descansa Ricardo Reis, porque o ritmo antigo cai com o ramo alto
perante o arquejo de Apolo na curva azul
essa-mesma que os deuses concederam para me tornar crente.

Coitado do Campos que nunca chegou a ser ninguém.
Parecia sonhar e nunca dormia.
Apanhei-o muitas vezes a bebericar borracha dos cigarros que enrolava
metia nos lábios e fumava a pedir cheiro
acompanhado do fato roçado que nunca escovava.
Deixei-o uma noite em plena esquina da minha rua
- que era também a sua -
a mesma rua que subia e que descia quando saía de casa da tia
sem que desse por ela.
Rua formidável a nossa rua, não é Álvaro de Campos?
Tinha o aspecto de uma rua sem sentido
com um largo em cada lado e um jardim no meio.
Era esta a nossa rua. A rua dos desordenados
dos que nunca tiveram cama
mas sempre a dos que tiveram para ouvir e para dar.
É esta a rua da casa em frente uma da outra
que por sinal não tem nada de igual
mas que é tão igual como todas as outras-todas.
Pergunta-se tudo ao Campos que ele explica.
Eu tenho o dom de o escutar. Ele é engenheiro e eu aprendiz de mestre.
Falta-me saber coser. O Campos nisso, é entendido.
Entendes-me Campos? Explica lá como é que fazes?
Quando o Campos se põe a andar... nada feito.

Um dia, o Almada disse-me que ele era um mau engenheiro mas um bom poeta!

Perguntei-lhe como é que ele era um bom poeta
se punha a Tabacaria do outro lado de lá da rua?
Entretanto, o Pessoa-Fernando apareceu, meteu-me o seu braço no meu
e lá fomos a falar sobre o Campos.
Disse-me, tal como o Almada, que o Campos era um bom poeta
mas um incompreendido, tal como o Raul Leal ou o António Botto
o Mário Saa, o Ângelo de Lima ou o Mário de Sá-Carneiro.
Haveria de vir o tempo em que todos iriam dizer
que tinham conquistado o mundo sem precisarem de descer
pelas janelas das traseiras ou pelas portas dos manicómios
arrumar a vida e organizar o definitivo
que é o sorriso tímido para quem tem olhos de papel.
O que eu vou fazer, disse-me o Pessoa-Fernando, amanhã, amanhã já
é .organizar o Álvaro de Campos na mesma coisa que antes de ontem
- um antes de ontem que é sempre...

Cedo, beijo o crepúsculo nas manhãs das minhas frias mãos.
Não, não posso ser eu.
Hoje tenho outros vícios...

Ouve Caeiro!
E tu, Reis...
Coitado do Campos que nunca chegou a ser ninguém.

Há saudades nas pernas e nos braços
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.

Sou eu mesmo, que remédio! ...

José Manuel Capêlo, Odes Submersas, Átrio, 1995

domingo, 3 de agosto de 2008

Imagina e sabe

pintura de Emília Matos e Silva


Imagina e sabe, porque o melhor da vida
é procurarmos o fingimento sem nada fingirmos
mentir de propósito sem nada ter para mentirmos.
Como neófita, não temas a morte. Ela é o caminho
onde prendemos a vida e o sossego do nosso segredo
imenso e fértil, como a ousadia de nos sabermos vivos.

José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

E se tu não existisses?

pintura de Eduard Manet O jardim de Inverno

E se tu não existisses? Se apenas fosses
um secreto lugar onde se escondem as montanhas?
Se ninguém fosse teu, como da terra os oceanos
e os lugares, os dons da luz e da cor?
Poderias ser como o oco das máscaras e dos falsos ocasos
a vulgar penumbra dos lugares e dos rostos indescritíveis
um sorriso pleno aos lugares dos corpos
rio paralelo duma ponte sem margens, sem dor
sem força. E se tu não existisses? Poderias ser
apenas sorriso que se fizesse em lugar reservado
um olhar por entre os corpos que se movimentam
num recinto de dança, entre abraços de ocasião.
Se apenas fosses esse lugar, talvez que os teus olhos
se tornassem azuis de tanto serem verdes. Sorrir-me-ias
com o mesmo encanto, com que teus lábios suavíssimos
se me sorriam, pois longe está o corpo do homem próximo
como perto, está o meu de beleza indómita e selvagem.
Lembrei-te porque, se existisses, eras meu corpo
nesta terra de alegria. E como é triste esta terra
de alegria-assim, réstia de um lugar onde se vêem
os olhos, que, de tão sedentos, cegos são.

José Manuel Capêlo, A Voz dos Temporais, Átrio, 1991