quinta-feira, 25 de setembro de 2008

aos quarenta e oito anos da morte prematura

pintura de Cornelis Norbertus Gysbrechts

para Fernando Pessoa



Nascia a manhã na voz dos galos
— trombetas guturais dos terramotos por se abrirem —
e havia a tua mão a pedir luz
na voz do homem que ia morrer sem saber
que dia seria amanhã. Onde estarias?

Como é louca a noite nos olhos dos mortos.
Tão plena e igual ao olhar dos vivos
que caminham — igualmente
como os prédios enfrente em que a luz não vem.
Secam-se-lhes os cabelos com a cola de pedra
nos lençóis brancos em que nunca julgaram dormir
porque a terra será pequena para o seu silêncio
de estátuas falsificadas pela cor.

Morre jovem quem Deus ama. E é o álcool
que adormece, no infinito, todos os tecidos paralisados
as fibras locomotoras que já não accionam nada.
Mais vale assim, assim serenamente
quando o mar se abre e as nuvens correm paralelas
junto ao rebordo da terra que não deixa vestígios
nem levanta os olhos a dizer que ali está.
Mais do que o tempo de sono é o tempo de frio.
E ninguém está lá para ver que o céu é imenso
e a luz ténue. Que todos têm imagens
e favores a pedir. Que a terra é estranha e a boca seca
nos álamos gelados em que nos encostamos.

Desce o tempo neste tempo
de quarenta e oito anos de morte prematura.
Se tivesses vivido mais uns segundos
o que é que terias deixado? Ah! imenso areal de dunas
a prolongarem-se nas praias. Deixem-me vazio com o teu silêncio
com a tua voz desconhecida que jamais toquei.

Tinha onze anos a tua morte no meu despertar
nesse Janeiro frio, de terra molhada
quando os sinos de Castelo Branco apregoaram
aos ventos marítimos o vagido
do cordeiro da raça triste.
E não foi que nasceste!? Descobri-te
nas pegadas mínimas da incrível juventude
atrás de um reposteiro de noite caída.
e não dormi mais. Sonhei sempre.
Segui os passos que me mandavas dar
como se a terra não fosse o caminho seco
que me destinava a percorrer
mas o rol dos teus versos que ia compondo.

Também eu hei-de morrer jovem. Só que Deus
não me amará como a ti te amou
inifinito de luz à procura dos óculos
no nevoeiro de quarto que se ia formando
à medida do sol que se deixava ver.
Como é louca a noite nos olhos dos mortos.
E eu sem saber se te vou encontrar.



José Manuel Capêlo, Margens, Perspectivas & Realidades, 1982

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