segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Certo, até ao momento de chegarmos

Paraiso, de William Blake


Viajo na noite incógnita e escuto...
Oiço, num desponte, o ladrar dos cães pelo tempo adiante. O mirrado cantar dos galos na alvorada a despontar. O desfiado riso dos madrugadores a barbearem-se no grito alegre dos padeiros em distribuição de pão. O assobiar dos varredores de ruas em serigaitada permanente. Viajo em tudo, enquanto a outra metade dorme, ou pelo menos, desperta. Viajo... Tudo está certo, mesmo o errado que se confunde com o balouçar das folhas, enquanto a brisa se evade na procura e o andar do homem fere as calçadas desgastadas pela erosão dos momentos. Enquanto a noite adormece para acordar mais tarde e a manhã desponta na quietude dos pântanos amordaçados. Se aflige. Viajo ... No futuro das imagens que tornamos ilusão, desejo que formamos sentir, sentidos que adoramos como certeza. Como se de reais se tratassem e não esmorecessem as formações alegres dos nossos sonhos de riso e prazer. Viajo ... Em ti, na certeza de te chamares mulher e teres um corpo bem diferente do meu. Tentar-te na proporção de me desejares possuir sem nos pretendermos egoístas ou simbólicos adoradores. Viajo ... Na vida que nos habita e nos ama, como se nos lembrássemos de todas histórias boas, ouvidas em pequenos. Sem destrinças, sem medos, sem vazios de alma. Viajo... Até ao momento de chorarmos. De querermos ter e não pudermos, já que tudo é difícil, difícil demais para os nossos olhos. Porque o somos e não nos enganamos. Porque nada se perde. Tudo se transforma.

José Manuel Capêlo, Rostos e Sombras, Sílex, 1986

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