terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Nunca chego a casa. A minha imensa manhã acaba no outro dia.

pintura de Albert Anker


Nunca chego a casa. A minha imensa manhã acaba no outro dia.
No dia em que os homens inventaram a vida, secretamente
em que me vi velando o vaso sagrado da última leitura dos lábios
em que o sol repousava a pique sobre a minha cabeça.
Nunca chego a casa sem que a imensa manhã acabe no outro dia
no momento em que seguro as algibeiras e lembro
que a distância que me separa da terra
é a mesma da distância que me separa do sonho.
E amo o sonho e o amor.

Ninguém ama e sonha mais facilmente do que os homens tementes e incuráveis. Mas ...

Nunca ninguém inventou a minha infância!
Ninguém me disse como foi a minha ousadia
como ela aparecia, como ela se parecia
como ela se transfigurava, como ela era!
Ninguém me disse nada. Como me cresciam os cabelos
se me iluminava o olhar
corriam os rios, que me diziam as pessoas ...

Nunca ninguém inventou quem eu era!

Quem me poderia imaginar no pequeno que crescia
com os calções brancos à margem do joelho
sapatos envernizados colados às meias brancas
o cabelo curto, olhos grandes à procura do tudo
que era o nada que eu via em tudo o que me aparecia!?...
Quem me poderia imaginar no pequeno que eu era
com as mãos soltas a erguerem choros
lágrimas pesadas de encontro ao peito
corridas breves na praceta
- pequeno largo do meu destino, da minha alegria, da minha solidão!-
jogos de bola, sapatos escalavrados, calças rasgadas
corpo sujo, sovas monumentais. A minha Mãe!

Nunca ninguém inventou quem eu seria!
Nem mesmo quando jovem; a barba a desfiar-se no rosto branco
a vista pregada na janela da frente, olhando a pequena Lúcia
que se escondia por dentro dos reposteiros
olhando-me desafiante
em todas as horas do dia
às escondidas dos pais.
Mesmo, quando as correrias se faziam em horas retardadas e mendigas
em saltos do rés-do-chão para a praceta
em jogos de berlinde, na terra solta e escalavrada
até que as horas chegassem, para que chegasse o tempo
do jantar
da luz muito minha
- daquela que me habituara a olhar
na lâmpada que se suspendia do tecto.
E adormecia com a claridade da sombra.

Nunca ninguém inventou a minha infância!
Mesmo quando inventei o sabor do meu primeiro cigarro
quando dei por mim a satisfazer-me irrepreensivelmente
quando pela primeira vez respirei os lábios duma francesa, mais velha,
na Nazaré, ou, quando uma jovem prostituta, numa rua de Tomar, me
conseguiu abrir as pernas. Aí, inventei o verão da ânsia, o desejo de
correr por entre as margens do dia e da cidade, correr veloz antes que
a juventude se acabasse, antes que as colinas tomassem os lugares dos
espelhos, os homens me gritassem os seus códigos secretos, a palavra
viesse com a sua tonalidade negra.
Nunca ninguém inventou a minha infância.
Apenas eu a conheci, mendigando as horas, muitas;
as tristezas, várias; as loucuras, velozes; as palavras, atrevidas.
Quem inventou a minha infância?
quando cheguei a ela, a luz tinha a hora do sol
e este olhava-me, no seu espelho mágico e encoberto...

José Manuel Capêlo, Odes Submersas, Átrio, 2000

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