domingo, 25 de janeiro de 2009

palavra inicial IV

Perseus com a cabeça da Medusa, de António Canova
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vago e calmo é o poeta que se desprende das dores e dos vícios. do alheio e do que o habita. do que é real e imaginário. do que é facilmente disposto e dificilmente mentido. a cidade é uma página. a luz, um faiscar simultâneo e repentino. tudo aparece por entre as clarabóias dos prédios velhos e remendados. quem me vem dizer do que não posso? quem me viu onde ninguém me visse? sofro o medo horroroso e profundo do homem do leme. mas não o largo. menino de minha mãe me fiquei órfão de pai aos três anos. e quem mo lembrou, senão esta memória fácil e secreta? quem mo recriou, senão este gesto breve e fecundo? quem se me apercebeu, senão este caminhar de anos por entre as feridas da lembrança?! ninguém me esqueça como ninguém me lembre. tenho onde hei-de estar e que não me inventem!
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José Manuel Capêlo, Enche-se de Eco a Cidade, Átrio, 1989

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